Havia uma espada cravada ao lado de sua cabeça. O soldado jazia desfalecido com a face rude pressionada na lama. Não havia mais ninguém. Um resquício de vida se pendurava no fio de sua lâmina que lutou bravamente ao seu lado e agora sente o sabor amargo da derrota humilhante. Recolhi-me as asas e olhando fixamente o meu reflexo demoníaco no fio da lâmina, perguntei-lhe o que o fez reclamar o seu fim ao ceifeiro.
A lâmina fincada no chão pisado voou ao céu sobrenatural. Vibrou o fio da espada e o resquício de vida do guerreiro caído possuiu a arma. Nesse instante relâmpagos cortaram as nuvens ao meio seguidos por trovões retumbantes. Grossos pingos de chuva despencaram do céu e a escuridão inundou o cenário derradeiro.
— Fui derrotado — disse uma voz espectral oriunda da espada flutuante.
— E um guerreiro não deveria estar acostumado às derrotas? — retruquei.
— Não busco piedade, ceifeiro. Busco o fim da humilhação — disse a espada —, um fim digno para um guerreiro, corte-me com a sua foice.
Os momentos seguintes foram silenciosos. A chuva caía pesadamente e antes que eu pudesse perceber, o sangue já havia se esvaído e a armadura prateada do corpo moribundo refletia os relâmpagos que despencavam intermitentes em meio a tempestade. Olhei em volta e o ar fatídico aguçou minha curiosidade. Sentimentos genuínos nasceram no meu âmago e talvez tais sentimentos e curiosidades alcancem o leitor tão intensamente quanto penetraram o meu ser.
— Você, guerreiro, já lutou muitas batalhas. Venceu inimigos e foi derrotado por outros. Entretanto, só agora clama a mim o seu fim. Onde está a dignidade que tanto busca!? É digno morrer enquanto ainda se pode lutar?
— Não fui apenas derrotado, demônio. — respondeu a lâmina sobrenatural — A humilhação pela qual passei, não desejo relembrar. Desejo o meu fim, para que as batalhas até aqui sejam esquecidas e se percam no passado. Para que meu nome não visite mais este mundo e meu coração não seja mais mutilado por donzelas que escondem adagas.
— O que seria dos guerreiros sem suas donzelas!? — questionei.
— Basta olhar-me, demônio ceifador. Basta olhar-me — disse a lâmina —, este corpo imóvel sob a chuva melancólica. Nada! Não é nada sem sua donzela. E ela não voltará para ele, e ele não voltará para ela.
— Por que? — perguntei imediatamente.
— Aqui mesmo neste campo minha espada cruzou sua lâmina com a de meu adversário. — Nesse momento a espada imbuída com a alma do guerreiro caído iniciou sua narrativa — Um guerreiro formidável. Comigo as bençãos de minha amada, doce como um botão de jasmim. Prometeu-me seu coração e por ela eu brandi minha arma. Meu oponente pôs-se em posição e lhe ataquei com toda convicção que me era intrínseca.
Nossas lâminas colidiram diversas vezes. Uma disputa de força nos colocou face a face. Vi em seus olhos um amor genuíno. Sua alma lutava por algo muito maior do que minhas convicções. Talvez, suas motivações comparadas às minhas tornar-me-ia um ser egoísta e sem coração. Entretanto isso não seria um fato, pois meu coração pertencia àqueles cabelos negros e minha alma era gêmea daquele sorriso largo. O que seria de um guerreiro sem sua donzela, ceifeiro?— Não é nada — eu disse.
— Não é nada — retrucou a espada.
Dito isso, somente o tamborilar da chuva na armadura do moribundo ressoava. Então precipitei-me:
— Conte-me o desfecho, ô caído. Como prosseguiu a batalha?
— Nossas espadas continuaram a se cruzar. A donzela observava aflita nossa disputa. Eu desferia golpes violentos no meu oponente colocando-o em postura de defesa até que o diabo perdeu o equilíbrio caindo de joelhos diante de mim. No golpe seguinte sua espada foi ao chão. Preparei-me para decapitar-lhe e acabar de uma vez por todas com aquele duelo. Já com o braço ereto e a espada cortando o ar em direção à sua jugular o grito da minha amada penetrou-me os tímpanos.
Virei-me para ela que clamava a plenos pulmões pela vida daquele homem. Não pude crer em tamanha traição. Aquela cuja honra eu defendia com minha espada clamava pela vida de quem a prafanou. Paralisado por um sentimento de angústia e arrependimento, não pude ver quando meu adversário retomou sua espada e atravessou meu abdômen.
O sangue irrompeu garganta a cima e transbordou em minha boca. A tosse vermelha e o gosto amargo me trouxeram até aqui. — Meu corpo jaz semi morto na lama —. Despenquei diante do meu adversário que, a pedido da minha donzela, negou-me o golpe de misericórdia. Ambos partiram. Deixaram me para trás com a humilhação e a desonra que só o amor pode proporcionar. Entende agora, ceifeiro?Consenti com um gesto de cabeça. Meu manto negro balançou ao sabor da ventania que aos poucos limpava o céu. Abri minhas asas negras preparando-me para desferir a sentença. A foice se materializou diante de nós e pude enfim pronunciar seu futuro.
— Não é sua hora. — disse-lhe — Não é sua hora. Deve ficar na terra e erguer sua espada mais uma vez. Você viverá e conquistará o mundo com sua convicção. Até o fim lutou e sofreu uma derrota inimaginável, mas isso não significa o fim. Meu pai, aquele que criou todas as coisas está à cima das paixões humanas e por ele que você viverá. Dará graças a Deus e esquecerá aqueles que pecaram perante seu pai e violaram a pureza de seu coração, pois todo o amor advém de Deus e aqueles que pecam contra o amor Dele, pecam também contra Ele e sofrerão as penitências por seus atos. Suas batalhas e suas dores estarão enraizadas na sua carne até o fim de sua vida, pois são elas que fazem você ser o que é. Viva.
A espada sobrenatural perdeu seu encanto caindo no chão de repente. Com minha mão esquelética segurei sua empunhadura e penetrei o corpo do guerreiro atravessando seu coração. Retirei a lâmina colocando-a em sua posição original. Abri minhas asas etéreas e voei através das nuvens com velocidade prodigiosa. Lá de cima observei um feixe de luz escapar por entre as nuvens negras e iluminar o guerreiro. A vida voltava ao seu corpo frio e a tempestade dava lugar a uma nova esperança. A renovação da honra vem de meu Pai, todo amor pertence a ele e ninguém deve violar a pureza desses sentimentos, pois pecar contra o amor de Deus, é também pecar contra Ele.
Aquele homem viverá até o fim de sua vida com uma cicatriz em seu peito para sempre lembrar-se que o amor verdadeiro não pertence aos humanos.
Farfalhei minhas asas etéreas e voei para escrever está narrativa. Deixei o jovem guerreiro com a esperança de um novo recomeço e o sol aqueceu-lhe a pele mais uma vez. Quando levantou-se não viu tempestade. Sua espada estava imbuída com o propósito divino e seu coração foi cortado ao meio para que nunca se esqueça de quem ele é.
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O livro do Ceifador
FantasiaO ceifador é um ser místico de aparência cadavérica e asas negras, muito semelhante a um anjo. Em algumas culturas é tido como um deus e conhecido por muitos nomes; Anúbis, Thanatos, Hades, Yama, etc... Independente dos nomes pelo qual é conhecido s...