Último beijo

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— 1 —

Ele a viu sentada no banco da praça logo em frente. Pela primeira vez em tempos, sentiu frio na barriga ao observá-la de longe. Ela não dissera com todas as palavras o motivo pelo qual o chamara ali, porém as coisas entre os dois não estavam andando muito bem nos últimos dias, e sendo assim o garoto era capaz de deduzi-lo. Ao olhar para o lado, a garota o viu caminhando na sua direção.

O menino andava de modo um tanto estranho, não mostrando firmeza nos seus passos e frequentemente tropeçava em alguma coisa. Sua pele estava pálida e ele passou a ter ataques de estresse nos últimos dias, quase sempre direcionados a ela, os quais ficaram mais frequentes depois das injeções para dor que precisara tomar.

"Remédios curam doenças gerando outras", pensou.

Quando chegou perto do banco, ela se levantou e o abraçou, mas o garoto se sentiu incomodado com o contato do corpo dela, que parecia estar extremamente quente se comparado com o dele, sendo difícil manter o toque. Ela notou o desconforto e se afastou, com os olhos já marejados.

— Bom. Eu acho que você tem alguma ideia do porquê de eu te chamar aqui... Ainda mais a essa hora da noite.

Como ele não expressou nenhuma reação, a garota continuou.

— Infelizmente eu não consigo conviver mais com você — completou, lágrimas escorrendo pelo seu rosto. — Você mudou tanto nos últimos tempos que eu nem consigo mais te reconhecer. Eu acho que não o amo mais.

Aquilo o atingiu de um modo arrasador e ele sentiu uma dor excruciante no coração, que depois se espalhou por todo o seu corpo. Não conseguindo suportá-la, ajoelhou no chão, a cabeça abaixada, as mãos no peito e a pulsação acelerada.

— Você está bem? Ei! O que houve? Fala comigo!

No entanto os sons da fala da garota estavam distantes e a mente do garoto muito confusa. Ela chacoalhou o ombro dele, desesperada.

Ele começou a sentir os olhos esquentarem, como se estivessem em combustão, e olhou diretamente para o rosto dela. Ouviu um grito e em resposta uma ira muito grande encheu seu peito, além da coceira quase insuportável nas gengivas e de algo que passou a arranhar seus

lábios. Alguma coisa viscosa passou a escorrer pela boca e ele não sabia dizer se era sangue ou saliva.

Logo depois veio o formigamento nas pontas dos dedos e viu que suas unhas transformaram-se em garras curtas, afiadas e escuras, a pele de suas mãos e braços adquirindo um aspecto esquisito de tecido grosso e áspero. Olhou novamente para a garota ainda paralisada no lugar, pálida de terror, e sentiu as pernas começarem a se movimentar involuntariamente, fazendo-o se levantar do chão aos poucos. Ele tentou parar, se virar e fugir, mas não conseguiu. Era como se algo estivesse dominando-o, como se tivesse se tornado uma marionete. Estava tão assustado quanto ela.

Ao ficar de pé, testou, por fim, alguns passos trêmulos na direção dela.

— Quero um último beijo — disse, como se outra pessoa estivesse falando por ele, e conseguiu perceber que estava sorrindo.

— Socorro! Alguém me ajuda! — berrou ela, disparando para longe, desperta, de repente, do transe em que se encontrava.

Ela foi em direção ao bosque que ficava logo após a praça da cidade e o garoto-monstro a perseguiu pela escuridão, os sentidos muito mais apurados do que estava acostumado, permitindo que conseguisse sentir o cheiro do medo dela. E como era inebriante senti-lo! Aquilo o motivou ainda mais a capturar a presa.

Não demorou para que ele a encurralasse, uma árvore grande bloqueando o caminho. Ela parou e se virou.

— Desculpa! Desculpa! Por favor, não me machuque! Não me machuque! — e outra vez lágrimas derramaram-se pelo rosto dela.

Aquilo cortou o coração dele e fez com que gritasse em sua própria mente para que parasse, o desejo de se virar e fugir sem machucá-la mais forte que qualquer outra coisa, porém, mesmo assim, agarrou-a pela garganta, quase com força suficiente para se quebrar ossos, e a levantou do chão. Ainda sorrindo, exclamou:

— Eu disse que quero meu último beijo!

Ela fechou os olhos enquanto era arremessada contra a árvore, caindo inerte no chão logo depois.

O monstro aproximou-se do corpo e o tocou, seios, barriga, pernas, e o garoto em sua mente temia pelo que viria a seguir. Sentiu a mão indo em direção ao pescoço da garota, fazendo, com a garra do dedo indicador, um corte na jugular, que soltou um jato de sangue na mesma hora. Deu, por fim, uma espécie de rugido gutural e começou a se alimentar do sangue dela.

— 2 —

O garoto abriu os olhos e viu árvores gigantescas em toda a sua volta, mas só percebeu as manchas de luz que oscilavam entre o vermelho e o azul e o incômodo no pulso algum tempo depois. Estava deitado por cima de seus braços.

Sentia um gosto estranho na boca, metálico, e então, lá no fundo de sua mente, começou a ouvir sons, bem baixos e difusos no início, mas que começavam a tomar forma na surdez e confusão que diminuíam. Tentou levantar-se de onde estava e quase desmaiou, a cabeça girando sem parar, mas foi o suficiente para perceber que o incômodo nos pulsos vinham de algemas. Ainda não sabia, mas se lembraria por muitos dias as palavras que ouviria logo em seguida.

— Tem o direito de permanecer calado, filho.

Então as cenas horríveis da noite passada voltaram todas de uma vez.

Então as cenas horríveis da noite passada voltaram todas de uma vez

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⏰ Última atualização: Oct 14, 2022 ⏰

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