O décimo oitavo andar.

4 2 0
                                    


Sentada em sua poltrona vermelha no meio da sala, perguntava-se se as coisas são como devem ser ou se são como desejamos que fossem, ou se uma coisa completa a outra e pronto, tudo fica no lugar. Deixou de ser criança há muito tempo, mas preservara o coração puro, não era bem isso o que pensava de si mesma, não era pura, muito menos ingênua, talvez a palavra certa não seja essa, sonhadora talvez se encaixe melhor, quem sabe esperançosa, ou otimista... Nada, nenhumas dessas palavras eram importantes naquele momento, com o olhar fixo em uma foto, queria apenas saber quando foi que tudo deixou de ser o que era, onde foi que os caminhos se desencontraram e a estrada fez uma curva brusca, de forma que não mais pudesse avistar a linha paralela do amor com a amizade, os pés embaixo do quadril, a cabeça apoiada no braço que se apoiava no braço da poltrona. Encolhida, não se movia, não piscava, esperava respostas do retrato que sorria; daquele ínfimo momento de alegria, registrado e eternizado naquele papel especial chamado fotografia.

— Por acreditar na liberdade do amor, deixei que você saísse de minha vida, da mesma maneira que entrou, só não pensei que doeria tanto.

O semblante na fotografia sorria, parecia zombar dela, ela sentia isso, as lágrimas que ela não queria derramar, represaram-se na garganta como um tufão preso numa cordilheira, procurando uma fenda. Ela não sabia bem o porquê, mas enxergava algumas respostas no calendário de mesa ao lado do retrato, a mesinha de centro parecia maior que de costume, os olhos lacrimejantes faziam as letras embaralharem-se, o que era Junho no calendário, formou-se Júnior em sua vista embaçada, o rosto de Júnior continuava sorrindo. As datas saltaram-lhe do papel e assaltaram-lhe a memória, cada gesto, cada riso, cada pequena discussão, aparecia-lhe ali, no meio da sala, em frente à poltrona, como numa tela imaginária. Ele não era seu príncipe, ela nem queria que ele fosse um, queria apenas ser amada sinceramente, talvez até tenha sido, embora não reconhecesse isso naquele momento, ele se foi e ela sabia que ele iria.

Uma garoa com o sol começou lá fora, outra se fez dentro dela, chorou. Levantou-se vagarosamente, foi até a cozinha, remexeu o armário, o gabinete da pia, foi até o banheiro, virou as sacolas pelo avesso e enfim encontrou o que procurava. Ainda tristonha, atravessou a sala, pegou o retrato, apertando-o contra o peito seguiu até a janela de seu apartamento no décimo oitavo andar, olhou para baixo e deu um sorriso amarelo e dolorido. Poucos carros, a tarde já se recolhendo para que a noite chegasse, havia ainda pelo menos meia hora de sol, a garoa havia parado, era bom que fosse claro dia ainda, queria mesmo que todos pudessem ver, seria um espetáculo e não atrapalharia ninguém, já que o tráfego era pouco naquela tarde de domingo.

Com muita tranquilidade e já sem nenhuma lágrima, retirou a foto do porta-retrato, olhou-a por mais alguns instantes, debruçou-se no parapeito, queria que caísse na rua e não na calçada, quanto mais longe da janela, melhor seria, poderia sentir a direção do vento e ver a reação das pessoas. Picou a foto em pequenos pedaços várias vezes para que não pudesse ser colada, olhou para baixo, teve uma ideia repentina, correu até o quarto e pegou o ventilador, voltou à janela, plugou-o na tomada mais próxima e colocou-o em cima da mesa de centro, trouxe-a o mais próximo que pode, ligou-o na velocidade máxima, debruçou-se novamente para fora e atirou ao ar chacoalhando com força os braços para que cada papel laminado e colorido voasse pelos ares impulsionados pelo ventilador.

Lá estava a chuva de confetes brilhantes no ar, refletindo a luz do sol, a luz de um novo amanhã, de um futuro amor, já que aquele se foi e sua imagem também; espalhados pelo ar com o confete laminado, a foto repicada. Caiu do décimo oitavo andar aquele amor. Ela sorria satisfeita e aliviada por ter vivido mais um amor.

Contos que não valem um contoOnde histórias criam vida. Descubra agora