III - Dramin e Chá de Hibisco

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Jogo o enxaguante de menta na boca. Odeio o gosto da bile no fundo da garganta, e penso em engolir um pouco do líquido.

— Como você tá se sentindo? – A voz da minha mãe é abafada do outro lado da porta do banheiro.

Cuspo o enxaguante na pia.

— Já tô saindo, pera aí.

Jogo água gelada no meu rosto uma última vez e seco com a toalha.

— E aí? — Meu pai chega no corredor. Ele e a minha mãe estão com o mesmo semblante preocupado.

— É só o nervosismo habitual, vocês sabem. — Tranquilizo eles, mas eu estou tremendo um pouco e quero chorar.

Minha mãe parece entender e se aproxima para um abraço.

— Vai ficar tudo bem, querida.

E eu choro.

Meu pai também entra no abraço, mesmo que essa seja uma ação fora do seu costume. Ele dá uns tapinhas desajeitados nas minhas costas e diz:

— Respira fundo. Logo o dia acaba, as coisas são resolvidas e tudo se encaixa de novo.

Ficamos mais alguns segundos assim, juntinhos no corredor da casa. É silencioso, com exceção das fungadas que dou.

Faço como meu pai diz e respiro fundo. Nos afastamos.

— Tá tudo bem. Eu só preciso de algo para a cabeça e alguma coisa líquida para acalmar meu estômago.

Caminhamos para a cozinha. Minha mãe logo se ocupa de terminar os sanduíches e meu pai vai para a pia, limpar a bagunça que ela fez. É uma visão tão familiar que eu me sinto melhor.

Pego o chá de hibisco da geladeira e me sirvo.  Na bancada, olho para o relógio que está sobre a geladeira. 09h15.

Quase lá.

Desbloqueio o celular, evitando propositadamente o aplicativo de mensagens.

Já aceitei a resposta do seu silêncio.

Abro o Twitter e dou uma olhada nas notícias, nas novidades e o que meus amigos publicaram. Respondo algumas coisas.

09h18.

Dou um longo e pesado suspiro. Iam ser os minutos mais longos da minha vida inteirinha.

★★★

Finalmente, finalmente estava na hora.
Dou uma última olhada no espelho, conferindo o vestido azul pastel. Meus dedos tremem enquanto eu aliso o tecido leve e rodado. De repente, quero que o tempo pare e eu não precise passar por isso.

— Já estamos saindo! — Minha mãe me chama.

Saio apressada, indo em direção à calçada. O carro já está ligado e meu pai nos olha impacientemente.
Todos entram e logo partimos. Nosso destino é o salão principal, que fica no centro da nossa pequena vila. É uma construção modesta que não devia ocupar o espaço de duas casas. Era em formato de auditório, com capacidade para apenas 50 pessoas.

O número resumia bem a quantidade de pessoas da nossa comunidade.

Muitos carros estão estacionados do lado de fora.
Quero vomitar de novo.

— Tem dramin no porta luvas?

Tinha. Minha mãe me dá um comprimido e eu abro uma garrafa de água que estava jogada no banco. Não sei quanto tempo ela estava ali.

Sair só carro é difícil, porque minhas pernas estão bambas. Meu pai me ajuda, colocando meu braço sobre o seu.

Entramos no salão.

É abafado e quente, e tem muitos desconhecidos. Eu devo estar bem pálida, porque me sinto gelada.
Atravessamos o corredor, em direção aos assentos na frente que possuem o nosso nome. Fico feliz por sentar.

Meus pais também se acomodam, um de cada lado. Formamos uma unidade familiar de sucesso.

Fico concentrada nos meus próprios dedos tamborilando minha coxa, sem coragem para olhar ao redor. Os minutos se passam, o vozeirio vai se acalmando e logo começam a testar os microfones.

Encaro o pequeno palco na nossa frente.

Os cinco membros do nosso conselho estão de pé, alinhados, olhando para a multidão. Eles usam roupas bonitas, mas não são formais.

— Bom dia! — A voz grave de Charles, o líder da comunidade, silencia outras conversas paralelas. — Por favor, queiram tomar seus lugares para darmos início às nossas solenidades.

A maioria das pessoas se senta, mas outra parcela fica em pé, ao fundos, sem lugar. Excedemos a nossa capacidade.

— Quero dar as Boas Vindas à todos os presentes, em especial aos nossos convidados da Matilha de Felipe. Obrigado pelo apoio que vieram prestar às famílias. — Uma salva de palmas vem logo em seguida. — Neste momento, eu convido meu companheiro Alexandre, para continuar com a nossa cerimônia!

Outra salva de palmas. Acho que cheguei em um nível de nervosismo que me torna relativamente calma. Aquela calmaria de quem está no limite dos seus próprios sentimentos.

— Bom dia, queridos! — Ele nos cumprimenta com uma voz mais suave. — Todos vocês já sabem o porque estamos reunidos aqui, mas eu quero trazer à memória de vocês mais uma vez.

"Todos os anos, para honrar e manter viva a nossa tradição, jovens voluntariosos se reúnem com um propósito em comum: formas as novas famílias! Ao mesmo tempo que vocês receberam uma bênção, nós também entendemos que é uma tarefa árdua e por isso agradecemos pelo esforço que estarão fazendo."

Todos batem palma, olhando para os jovens. Olhando para mim. Meu coração quer parar.

— Vocês foram abençoados com o dom da fertilidade, a capacidade de gerar a vida. Não entendemos porque as coisas são dessa forma, mas sabemos que a nossa chance está em vocês. A sobrevivência das nossas tradições, dos nossos costumes, está em vocês. — Ele lança um olhar singelo para todos nós. — E o dom da metamorfose também sobreviverá através das gerações.

E tinha isso. Essa era uma responsabilidade grande. Sem a metamorfose, nós éramos apenas humanos comuns. Com ela, nós éramos incríveis.

— Agora quero aproveitar para chamar os nossos jovens, e apresentá-los à todos vocês. — Alexandre anuncia. — Por favor, se lavante e venha aqui ao som do seu nome:
Cristina Ferri. Adam Agostine. Markus Espinosa.

Ergo os olhos. Eu o acompanho atravessar o lugar até o palco. Está bem confiante.

— Rebecca Conti.

Me levanto, andando meio errado. Estou torcendo para não tropeçar.

Alexandre chama mais alguns nomes, mas eu estou distraída demais tentando usar a minha expressão mais confiante.

— Com todos reunidos, sem mais delongas, vamos apresentar as combinações e dar continuidade à cerimônia.

E lá vinha a melhor parte.

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⏰ Última atualização: Oct 20, 2022 ⏰

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