Quatro.

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A biblioteca estava escura. O silêncio era tão profundo que chegava a incomodar os ouvidos. Ficando no lugar por alguns momentos, Kagome esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enfim, fechou a porta atrás de si e correu os olhos ao redor, tentando avaliar o tamanho do acer­vo. O odor de velas apagadas permanecia no ar, mes­clando-se ao das cinzas na lareira. Respirou fundo deliberadamente para se acalmar e, enfim, foi tateando pela mobília até a escrivaninha. Distinguiu os contor­nos de um castiçal a um canto e, com mãos tremulas, acendeu a vela com um dos fósforos que trouxera no bolso. Sabia que a punição seria severa se fosse apa­nhada na biblioteca. Não era uma área permitida à criada da copa, em especial depois da meia-noite. E bem sabia que a velha Kaede adoraria puni-la por quebrar as malditas regras.

Adiantou-se, enfim, até as estantes imensas. Com reverência, passou as pontas dos dedos pelos livros ali enfileirados. Havia tantos, todos com encadernações de couro e títulos em dourado. Escolheu três volumes ao acaso e levou-os até a escrivaninha. Sob a fraca luminosidade da vela, abriu-os, um a um. Olhando atentamente para as páginas, correu a ponta do dedo abaixo das linhas. Seu indicador passou a se mover mais devagar e, enfim, parou. Os ombros tensos caíram e lágrimas copiosas rolaram por suas faces. Afastando os livros para o lado, deitou a cabeça sobre os braços e deixou que os soluços a dominassem. Tamanha era sua tristeza que não ouviu a porta se abrindo, nem notou o vulto franzino entrando na biblioteca.

Lorde Taisho aproximou-se com passos va­garosos. Seu corpo frágil e ligeiramente curvado era auxiliado pela bengala em sua mão direita e qualquer cadeira ou mesa por onde passasse à sua esquerda. Os últimos anos não haviam sido generosos com o idoso marquês. O abatimento e a palidez em seu rosto en­gelhado evidenciavam que já andava adoentado. Mas os claros olhos caramelos continuavam vívidos e aguçados, ao observar a garota soluçante em sua escrivaninha. Reconhecia o sofrimento profundo quando o via. Teria se retirado sem se fazer notar, mas seu corpo cansado parecia chocar-se com a mobília por conta própria.

Dando-se conta, de repente, de que havia mais al­guém ali, Kagome ergueu a cabeça abruptamente e deparou com o marquês. Com uma exclamação sobressaltada, levantou-se depressa e contornou a mesa, pre­parando-se para uma pronta retirada.

—  N-Não tive a intenção de causar nenhum mal aqui, milorde — desculpou-se, respeitosa.

— Tenho minhas dúvidas de que você pudesse cau­sar mal a algo ou alguém, menina. Qual é seu nome?

— É Kagome. Não se lembra de mim? — Ela tornou a se aproximar da claridade da única vela acesa. — O senhor me trouxe de Londres quando veio para cá, dois anos atrás.

— Oh, claro que sim! A garotinha que quer aprender tudo. — O marquês soltou um riso, sentando o corpo cansado na poltrona de couro com um suspiro. — E está aprendendo bastante desde que chegou aqui?

— Oh, sim, milorde — confessou ela, com um risinho.

— E se a contagem da porcelana que passa pelas mi­nhas mãos ensaboadas puder ser considerada como aprendizado, então estou aprendendo muito.

— Bem, acho que qualquer conhecimento que entra na mente e não estava lá antes pode ser considerado como aprendizado. Mas por que está vagando pela bi­blioteca na calada da noite? — Ele teve que erguer a cabeça para observá-la e, então, irritado, apontou um dedo ossudo para uma das cadeiras diante da escrivaninha. — Sente-se, menina!

Ao sentar-se, ela pôde ver-lhe melhor o rosto sob a luz da vela. Pela primeira vez, notou-lhe o estado abatido e entristeceu-se. Novas lágrimas brotaram-lhe dos olhos. Baixando a cabeça, tentou ocultar sua consternação.

— Eu... sinto muito... — disse, num tom embargado.

—  Chega de se desculpar. Agora me diga, o que estava fazendo aqui a esta hora?

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