Não saia do banho

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O pai do garotinho ingênuo e indefeso voltou do trabalho. Que será essa cara de raiva?, o garoto sempre se questiona. Ele o dava medo, e não sabia exatamente o porquê. Ele não era cristão?, talvez fossem aquelas mãos brutas, que se vistas de perto eram consideradas armas mortais mesmo com uma esponja. Ele voltava do trabalho rançoso de suor, com uma cara amarrada e uma aura de perigo iminente, e ia direto para o banho. Quando ele acabava, era fácil adivinhar o resto do dia. O vapor saindo da porta junto com aquela figura quase que animalesca(só não totalmente porque naquele ponto ele já tinha tirado a farda de policial) indicava um banho quente, o que significava que naquele dia a mamãe mandaria o garoto se trancar no quarto até a hora da escola. Num dia de sorte e banho frio, ele ia direto até a sala,ainda com cara de cansado, mas dessas vezes mais austero que chamejante de raiva, sentava-se no sofá, ligava a tevê no canal de notícias e só pedia um cafézinho ou água para a mãe até a hora da janta, depois dormia e tudo se repetia, inclusive a o instinto de ficar perto da mãe até ter certeza que tudo estava bem.

Hoje não era um dia de sorte, muito menos de banho frio. Tão tensa era a situação que o homem carrancudo não foi direto para o banho, e ao invés disso, pôs-se a gritar: "Mulher, sai já desse fogão! Tô puto, hoje o dia foi uma merda". Ela não respondeu, e lançou o olhar que o garoto já reconhecia. Aquele olhar mais soturno e amedrontado que o normal significava que era hora de ir para o quarto e se proteger, e ele não sabia exatamente do que.

O garoto fingiu-se de obediente, correu para o quarto e trancou a porta. Ansiosamente, querendo saber o que se passava quando ele ia para o quarto e ficava lá até a hora da escola, esperou alguns segundos. Ele só conseguia ouvir o barulho da tevê muito alto, mas ele sentia que algo mais acontecia. Algo mais aterrorizante, que continuava apitando o instindo de proteger a pessoa que ele mais amava na vida. Ele destrancou a porta com muito cuidado, sem deixar um barulho metálico sequer escapar. O barulho do jornal ficou mais alto. Pelo feixe da porta, o garotinho antes inocente, ignorante e feliz, viu a cena mais hedionda já vista em sua vida.

Sua mãe estava estagnada no chão, não fugia. Seu pai, que agora justificou o medo que o garoto sempre sentira, estava segurando o maxilar da mãe com tanta força que a mulher retraía os olhos e o resto do corpo, como se isso fosse tornar a dor tolerável. O garoto abriu um pouco mais a porta, e conseguiu enxergar ainda gotas vermelhas e transparentes no chão. Com mais clareza, percebeu que lágrimas escorriam dos sofridos e retraídos olhos da mãe, e o sangue permeava a boca e as mãos do pai. O avental da última vez que conferiu estava passado e limpo de maneira impecável, mas agora estava amarrotado e contava com a presença das mesmas gotas vermelhas do chão. O garoto fechou a porta, porque não aguntava mais assistir àquilo. O barulho frívolo das notícias da tevê já não disfarçava mais os soluços e socos destoantes que vinham da sala. Agora que ele prestava mais atenção, e mesmo sem querer, escutava atônito, e agora estagnado, assim como a mãe. Não conseguia fazer nada, mal conseguia respirar, não sentia nada à sua volta.

Deitou-se na cama e enrolou-se no cobertor, como se aquilo o fosse proteger de toda a escória humana que pairava naquela casa. Não podia fechar os olhos, pois sempre que o fazia, a desgraçada lembrança de sua mãe encolhida no chão se atrelhava por entre seus pensamentos de novo, de novo, e de novo. Um amargo sentimento de arrependimento por não conseguir agir estalou em sua língua. Ele tentou dormir, mas sempre que fechava os olhos...

Parecendo milênios, minutos se passaram. A mãe abriu a porta do quarto, fraca e enviesada, e deitou-se na cama com o menino. Nada foi dito, ela sabia o que ele viu, e o silêncio alto depois que a tevê foi desligada parecia mais estrépito que calmante.

-Mamãe.

...

-Mamãe?

...

-Mamãe, o que foi aquilo?

-Filho.- Ela se esforçou para sussurrar. - Eu não vou te abandonar...não vou.

-Mamãe, eu odeio o pai.

-Eu queria poder dizer o mesmo... filho. Mas... ele... paga a nossa comida... se eu ousar falar isso, se eu ousar tentar viver sem ele.... nunca darei certo.

-Eu não entendo, mamãe. Eu quero fugir daqui.

-Você não podia ter visto isso.

-Vamos para a casa da vovó, por favor.

-Ela...não gosta de mim, filho. Ela... não... gosta da gente.

-Porque, mamãe?

-Sua avó não queria que eu casasse com ele. Eu... devia ter ouvido a velha.

-É assim a vida, mamãe?

-Dor e sofrimento... pra mim. Alguns são mais felizes que outros. Você vai ser mais feliz que eu, quando crescer... Eu agradeço tanto a Deus que você, pelo menos, nunca precisará passar por isso.

-É assim que acaba?

-Pra mim, meu filho, acaba assim. 

Textos semi-filosóficos.Onde histórias criam vida. Descubra agora