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O som da musica clássica me acordou, como em todas as manhãs de sábado desde que nos mudamos de Gomore para Bastin. O cantarolar suave de silabas era embalado pelo teclado da antiga maquina de escrever da minha mãe. "Tlin"
Ouvi o puxar da folha e a risada contente de satisfação.
- Leon, venha ler o que eu escrevi- a voz da minha mãe ecoou pelo corredor.
Caminhei ate a porta do escritório e parei encostada no limiar, papai estava com a folha recém saída da maquina em mãos, o óculos na ponta de seu nariz auxiliava-o a ler as letras miúdas. Mamãe estava sentada em sua cadeira, olhando-o esperançosa, enquanto calmamente papai lia seu manuscrito.
- você será uma grande escritora meu amor- sorriu olhando-a com adoração.
Beijaram-se apaixonadamente como nas novelas de domingo à tarde e eu fui incapaz de segurar o riso, acompanhado de uma expressão de nojo.
- ora, ora, ora... Temos uma xereta aqui- papai inclinou-se em minha direção, sorrindo.
- acho que terei que enche-la de beijos também- o meu gritinho animou o lugar e eu corri em direção a mamãe, em busca de abrigo, enquanto papai corria atrás de mim pelo escritório.
Enfiei meu rosto em sua saia, inalando o cheiro do seu perfume de rosas ao som de sua risada, ah sua risada mamãe... Era a mais linda que já ouvi em toda a minha vida.
O som de sua risada era capaz de colorir os dias cinzentos, afugentar todos os monstros e fazer um coração partido se regenerar. Como eu queria mamãe, que você risse para mim novamente.
- você será uma escritora de sucesso mamãe- falei olhando em seus olhos arredondados.
- eu tenho a musa inspiradora mais radiante de todas, minha pequena garotinha- beijou-me a testa.
- deveras tem minha cara senhora, não ousaria jamais contestar sua constatação-
"o estranho jogo de palavras" pensei ao ouvir papai pronunciar tal frase.
Era um jogo que somente os dois entendiam e se divertiam com isso, a sua maneira. Era algo que os tornava um do outro, algo que ninguém podia lhes tirar, nem mesmo a morte.

Meu olhar estava preso em Cristhine, mas eu não a via. Minha mente não estava mais aqui, estava perdida em recordações, afundada nas sensações que as lembranças de minha mãe me traziam.
- conte-me como foi encontrá-la naquele dia Alice- pediu.
- que dia Cristhine?- estreitei meus olhos em sua direção e percebi sua real intenção.
- no dia 24 de fevereiro de 2008- especificou e senti como se estivesse atravessando uma lamina em meu coração.
- você quer saber o que eu senti, aos 11 anos de idade, quando encontrei minha mãe morta no tapete de casa?- perguntei seriamente olhando em seus olhos.
- sim, eu quero... - murmurou incerta.
-imagine Cristhine, se eu quebrasse todos os ossos do seu corpo agora mesmo, transformando-os em pós dentro de sua pele e apertasse suas costelas ate que morresse sufocada, agonizando em seu próprio sangue... Isso não chegaria nem perto da dor que eu senti. - trinquei os dentes.

Naquele dia mamãe arrumou meu cabelo em uma trança folgada, com um laço rosa que combinava com meu vestido, ela e papai haviam combinado alguns dias antes de me levar ao shopping para comemorar meu aniversário, mas mamãe não sentia-se bem para nos acompanhar. Depois de muito esforço conseguiu convencer papai a deixá-la em casa, descansando. Se eu soubesse, jamais teria me afastado dela naquele dia.
O dia passou correndo, como tudo que fazemos de bom na vida, e eu implorei a papai que ficássemos um pouco mais. Quando papai se deu conta já era noite, então voltamos o mais rápido possível para mamãe não se chatear, mas era tarde demais.
Seu corpo já estava gelado quando a encontrei e me debrucei sobre ela, implorando para que voltasse para mim, eu juro que implorei, e de nada adiantou.
- eu sinto muito- Cristhine murmurou.
- tudo bem, tenho a certeza que ela não se orgulharia do que me tornei- forcei um sorriso, empurrando as lembranças dolorosas para o fundo da minha cabeça.
O telefone de Cristhine toca, chamando a atenção de nós duas e ela atende rapidamente.
- sim senhor...pode deixar senhor- murmura sem tirar os olhos de mim.
-é Alan, ele quer saber de você - diz após colocar o telefone no gancho.
- e então, o que vai dizer a ele?- questionei.
- se continuar as sessões, não tem porque não voltar as suas atividades- torci minha boca em desgosto.
- estamos progredindo Alice, preciso de sua palavra que continuará a vir às sessões- fecha o bloco a sua frente, apoiando as mãos sob a capa preta.
- Kayla jamais me deixaria faltar- resmunguei levantando-me.
- te aguardo Alice- sorriu cordialmente e eu sai de sua sala, sentindo meu corpo inteiro estremecer, não em alivio como imaginei que seria.

A porta da sala de reunião estava aberta e vozes conhecidas saiam de lá de dentro, assim que entrei, captei a atenção de todos, acompanharam-me silenciosamente com os olhos ate o meu lugar de costume. Sentei-me, observando demoradamente cada rosto dentro daquela sala, não havia desconhecidos, mas também, sentia-me uma intrusa.
Não demorou muito para que Alan entrasse na sala com uma pasta marrom em mãos e um sorriso de orelha a orelha no rosto.
- agradeço a todos por estarem aqui, tenho algo importante a compartilhar- alargou ainda mais o sorriso e eu não pude evitar o revirar dos meus olhos. Nada que saísse de sua boca, despertaria meu interesse.
- fomos convocados para uma missão importante, precisamos acabar com um grupo extremista que tem crescido em nossas fronteiras- iniciou a explicação e eu bocejei.
- quando diz acabar, é pra acabar mesmo... tipo todos- disse Mauricio lambendo os lábios.
- terão carta branca para agirem conforme desejarem com os extremistas, somente com eles- avisa Alan.
- eu posso me contentar com isso - murmurou Gutto.
Observo ao redor e todos balançam a cabeça em afirmativa, concordando com os detalhes do plano passado.

A equipe é composta por quatro homens: Mauricio o mais impulsivo, Gutto o cauteloso, Ramirez o cruel, Pablo o gênio da tecnologia e eu, a única mulher. Alan disse que mulheres não foram feitas para esse negocio, somos movidas mais pela emoção que pela razão. Devido as minhas habilidades e alguns anos trabalhando na policia de Bastin, fui aceita como exceção, não que eu me orgulhe disso, pois conviver com eles não é algo que eu goste de fazer. Testosterona elevada ao maximo, combinada com orgulho vampiresco é uma bomba relógio, ate mesmo Gutto em um frenesi é capaz de matar a todos nós.

- acho que devo te parabenizar- a voz de Alan chama a minha atenção.
Percebo que esta ao meu lado, apoiado a mesa de vidro e estudando-me cautelosamente, ofereço-lhe minha melhor cara de confusa.
- eu vi os noticiários, você se controlou com o homem no Grant Park- sussurrou.
Sorri educadamente e manejei a cabeça, aceitando o que eu acho que foi um elogio.
- vejo que você e Cristhine estão progredindo- piscou para mim.
- Alan, você não tem nada de melhor para fazer?- ele engoliu em seco.
- Alice, eu fui bom com você, um obrigado cairia bem agora- murmurou nem tão alegre.
-Alan, essa equipe não passa de sanguessugas incontroláveis, você sabe que eu que mantenho as coisas em ordem por aqui. - respondi olhando no fundo dos seus olhos.
- Confesso que suas habilidades são impressionantes, mas todos são substituíveis- Alan não se contenta em ficar por baixo.
- Tente Alan, e vamos ver o quanto vocês humanos duram contra nós- ameacei e o vi engolir em seco novamente.
- mas não se preocupe você é um bom garoto e sabe exatamente onde é o seu lugar, não sabe?- dei dois tapinhas em seu rosto e me levantei, chamando novamente a atenção.
- como podem ver, eu voltei. Então vamos finalizar logo isso, alimentem-se com cautela e queimaremos tudo no final. - anunciei observando os rostos voltados em minha direção.
- como poderemos confiar em você novamente?- Gutto questiona.
- vocês não podem, mas se estou aqui é porque Alan confia que posso comandar essa unidade como já fiz outras vezes. - respondo.
- o frenesi não é algo bom de sentir, acreditem em mim quando digo que tudo esta sobre controle agora - falo acalmando a agitação de meus companheiros.
-é bom te ter de volta chefe- Pablo eleva seu copo em um brinde silencioso.
-é bom voltar- respondi.

-é bom voltar- respondi

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⏰ Última atualização: Mar 24 ⏰

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Nox Umbrarum - Noite das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora