III

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O dia estava chuvoso, para mim, particularmente triste.
Caminhei desviando das poças de chuva que formavam-se como espelhos de água, minha capa de chuva amarela e galochas vermelhas apareciam nos reflexos daquelas poças. Evitava olha-las, com medo de que elas mostrassem os sentimentos que havia enterrado dentro de mim.
Empurrei a porta de madeira velha e desgastada do Bar do Joe e adentrei o local, que nitidamente não era um lugar para a minha idade.
- sinto muito Alice - Joe disse ao me ver.
Forcei um sorriso falso a estampar meu rosto e permaneci em silêncio.
- está na última mesa, lá no canto... Vou pedir para Ronald te ajudar - informou ao se virar e procurar por seu filho.
- vamos preservar o que resta de dignidade ao meu pai Joe, eu mesma o levo -falei, tentando imitar o tom de voz usual de minha mãe, forçando uma confiança de menina crescida para não desmoronar diante da situação.
O velho Joe manejou a cabeça, aceitando a contragosto o meu pedido.
Girei em meus calcanhares e me dirigi até a mesa, tentando controlar minha respiração.
- pai? Está na hora de ir - murmurei incerta.
- me deixe - resmungou.
- por favor, eu estou atrasada - pedi paciente.
Peguei seu braço e o forcei a levantar, cambaleante, caminhou ao meu lado até a saída. Agradeci em silêncio a Joe e o levei para a casa.
O sofá velho já era de costume o lugar que acolhia seu coma alcoólico, assim que deitou iniciou a ladainha.
- perdoe-me Alice, eu... Eu... Não sei o que me deu - balbuciou.
- te deu o de sempre - sussurrei enquanto corria atrás de minha mochila para ir a escola.
À noite, que além de chuvosa, era pra mim, a noite mais triste do ano.
Porque há quatro anos, às 21h45min eu a vi sob o tapete da sala, com o frasco de comprimidos vazio em sua mão já gelada.
Não houve gritos e nem cartas de despedida. Gosto de pensar que não houve arrependimento também.
Me sentei no tapete, no local exato em que seu corpo deixou sua alma partir e abri meu diário. Como um ritual já conhecido de bruxaria, queria ser capaz de alguma magia que permitisse viajar através dos cosmos e outros planos astrais, para apenas conversar com ela, receber os conselhos que qualquer mãe daria a uma filha com treze anos de idade.

"Querido Diário, hoje fez quatro anos que minha mãe se foi.
Gosto de pensar que ela foi forte o suficiente para abrir mão de mim e procurar a paz, mesmo que isso a levasse diretamente para o inferno, como as beatas da missa de domingo gostam de falar. Cá entre nós, eu não acredito no céu e nem no inferno.
Hoje tentei seguir uma das rotinas metódicas e extraordinariamente organizadas dela. Sem sucesso obviamente.
Tudo que consegui fazer da lista, é o que, aliás, faço todos os dias, desde que ela me deu o meu primeiro livro de desabafos. "Ou mais carinhosamente chamado de Diário"

Escrevi até a exaustão e cai em um sono calmo e pesado.
Quando meus olhos abriram-se para contemplar o amanhecer tímido do dia, o silêncio que pairava no ar, fez meu estômago se apertar. Ele havia saído novamente e eu teria de buscá-lo. Talvez fosse essa a minha rotina diária, extraordinariamente caótica e desorganizada.
Estava certa, infelizmente.
Essa rotina cansativa me acompanhou até o final do ensino médio, quando eu, uma menina regular, com notas regulares, consegui a aprovação necessária e entrei na vida adulta com um pai bêbado para cuidar.
Naquele dia eu fiz algo que me persegue até hoje, como um fantasma para assombrar minha consciência.
- o que você fez Alice? - questionou.
Meus olhos encontraram os de Cristhine, permaneceu imóvel, sentada em sua cadeira desde o momento em que abri minha boca e comecei a despejar minha infância fracassada em seus ouvidos.
Seus olhos ainda tinham o brilho da curiosidade e o sorriso amável que me ofereceu, tinha a intenção de me encorajar a continuar.
- eu me priorizei, me coloquei em primeiro lugar e quebrei a rotina que me acompanhou durante a adolescência. Permiti-me experimentar da inebriante sensação de liberdade, que me convenci que uma adolescente de quinze anos deveria ter o direito de conhecer - as palavras atravessaram meus lábios amargamente.
- e então? - Cristhine empurrava-me para o abismo.
- então, meu pai voltou sozinho para casa de se envolveu em uma briga com homens armados - apertei os lábios.
- não é culpa sua - Cristhine murmurou.
A risada saiu ácida do fundo da minha garganta, senti vontade de esmagar cada osso do corpo daquela mulher a minha frente.
- Cristhine, eu mato pessoas e fim. Eu sou a caçadora e sua espécie a caça - olhei para ela que sorriu.
Virou a folha do seu bloco de notas, de relance vi que enquanto estava perdida em meus pensamentos, não havia prestado atenção, anotou tudo que achou interessante e fez isso agora novamente.
- gostaria de compartilhar comigo o que achou tão engraçado? - questionei adotando o seu tom de voz profissional.
- amanhã, quando você voltar para esta sala - fechou o bloco de notas e apoiou a mão sobre a capa.
- mesmo horário, estarei aguardando você Alice - fiz que sim com a cabeça e me levantei da cadeira, saindo fugazmente daquele lugar que parece ter extraído as palavras da minha boca tão facilmente, do que gostaria de admitir.

Caminhei pelas ruas desertas de Bastin, mais conhecida como a Cidade dos Ventos, o lago Cario soprava uma brisa gélida. Os cachos e ondulações do meu cabelo escuro, moviam-se, emoldurando meu rosto pálido que refletia o brilho da luz da lua , enquanto meus passos quebravam o silêncio sepulcral do parque.

As lembranças que nublaram minha mente durante a conversa com Cristhine, ainda sussurravam os segredos que deveriam se manter enterrados dentro de mim.

A noite caia como um manto negro azulado sobre o parque que tanto me lembrava a minha cidade Natal. Fazia desse lugar ermo, meu esconderijo secreto. Um refúgio de mim mesma.

Sentei-me no banco de madeira escura e estrutura em ferro e fitei o gramado, relembrando da minha adorada Cidade dos Jardins. Gomore, localizada no condado de Aneburgh , é dona dos mais lindos jardins que todo o território americano já viu. Os campos com flores que exalavam vida e a brisa que arrastava consigo o perfume de sonhos e esperanças.
Fechei meus olhos, inspirando profundamente, implorando em silêncio poder sentir o cheiro de lar que tanto me faz falta. Amaldiçoo minha natureza por me obrigar a dizer Adeus a minha Cidade dos Jardins, ao gosto refrescante de tequila e a luz do sol.

O silêncio deu lugar a passos largos e regulares, num ritmo apressado. A respiração pesada e ofegante despertou meus sentidos, meus olhos abriram-se para enxergar além da escuridão. Corria na minha direção um homem, o cheiro do seu suor percorrendo a pele despertava lentamente a besta faminta em meu interior. A ousadia que arrastava-se dentro de suas veias,encorajando-o a entrar na parte mais obscura do parque, onde o meu território de caça começava.
Observei-o compenetrada, como um animal a espreita, esperando o momento exato para atacar sua presa. Caminhei devagar ao seu encontro, meus olhos brilhavam na penumbra e minhas presas apontavam sobre o lábio inferior. Podia sentir no ar o cheiro do medo permeando suas entranhas e a adrenalina deixando-o lentamente.

Segurei seu pescoço e contornei seu corpo com o meu, agarrando-me a ele como uma cobra prestes a dar o bote. Minha língua percorreu a curva do seu pescoço e saboreei a leve amargor do seu suor, enquanto o pavor estampava seu rosto. Minhas unhas cravaram-se em sua bochecha, tampando-lhe a boca enquanto os murmúrios de lamento escapavam como uma melodia sussurrada ao vento.
Senti seus músculos tencionarem sob minha mão e minhas presas enterraram-se em sua carne. O sangue quente encheu minha boca, descendo pela minha garganta e acendendo tudo pelo caminho. O néctar humano escapava entre os meus lábios, traçando um caminho por minha pele em direção ao chão.

"você tem que parar" dizia a mim mesma, mas a sede urrava dentro de mim, implorando até a última gota.
O corpo do homem amoleceu em meus braços e vi em seus olhos o momento em que sua mente entregava-se a inconsciência, obrigando a me afastar. Meus olhosestavam vermelhos, injetados de sangue e fúria da besta que vivia na parte mais obscura do meu ser. Caminhei em direção a saída, abandonando com contrição o meu lugar, outrora imaculado e sagrado, agora manchado de sangue e horror.

O capuz negro escondia meu rosto, enquanto esgueirava-me entre as sombras da noite em direção ao meu apartamento. O prédio modesto localizado no bairro de Treeton é o mais próximo que tenho de um lar. Subi as escadas de emergência e parei na sacada, observando a linha do horizonte repleta de arranha-céus, grandiosos, verdadeiras obras de artes arquitetônicas. A Cidade dos Ventos despertava com o amanhecer do dia e os seus habitantes noturnosretiravam-se para o torpor.

 A Cidade dos Ventos despertava com o amanhecer do dia e os seus habitantes noturnosretiravam-se para o torpor

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Nox Umbrarum - Noite das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora