Na mira de uma bola

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Kim Soyang

E lá estava eu. Naquele dia frio em Tottenham, no norte de Londres. Eu amava o clima ameno que a cidade proporcionava, mas, naquela manhã, cogitei não levantar da cama. Ainda assim, insisti com meu corpo e me proporcionei mais um dia de trabalho. Se eu soubesse que, naquele dia, eu ganharia um nariz quebrado e uma vergonha alheia na internet, talvez eu realmente devesse ter ficado na cama.

Eu já estava acostumada a fazer cobertura de eventos esportivos, com artigos que saíam quase diariamente no site do jornal, no entanto, era a primeira vez que eu entrava como videorrepórter. Tudo isso por causa de um resfriado que Shonda, uma colega de trabalho especialista em videorreportagem, tinha contraído.

O novo estádio do Tottenham tinha acabado de ser inaugurado e todos os veículos de imprensa queriam registrar aquele evento

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O novo estádio do Tottenham tinha acabado de ser inaugurado e todos os veículos de imprensa queriam registrar aquele evento. O clube de futebol permitiu que houvesse um treino aberto e uma coletiva, a fim de responder todas as perguntas dos jornalistas. E eu estava pronta. Registrei meu nome para a sessão de entrevistas um dia antes e levei todas as perguntas rabiscadas em um bloco de notas.

Com a câmera pendurada ao redor do pescoço, peguei minhas coisas e desci do carro. Caminhei até a entrada de jornalistas e fui guiada por um funcionário até a área onde todos os jornalistas deveriam ficar.

O novo estádio era maior do que o antigo e extremamente tecnológico. As cadeiras das arquibancadas eram pretas e algumas brancas se destacavam entre as demais, formando o brasão do clube. A grama era de um verde tão intenso que doía na vista, mas lembrava os parques londrinos convidativos para um piquenique. Cogitei a ideia sórdida de estender uma toalha e comer torradas com geleia ali. Além disso, outro fato que chamava atenção era a enorme loja da Nike, a maior da Europa, que ficava dentro do estádio. Ao vê-la, tive a certeza de que precisava entrar lá e comprar algum presente para meu pai, que era torcedor fanático do time.

Tirei as fotos necessárias para o jornal e, então, caminhei na direção de um grupo de jornalistas, que já acompanhavam sentados, o treino. Não era um grande grupo, mas o suficiente para eu me sentir deslocada com todos. Shonda, provavelmente, conhecia e mantinha uma amizade com todos ali, no entanto, eu era apenas a jornalista substituta. Me sentei em um dos assentos livres entre dois fotógrafos que pareciam ter o dobro da minha altura, pus minha câmera apoiada no pescoço e dei uma olhada rápida no grupo ao meu redor.

Eis a vantagem de se trabalhar no jornalismo esportivo: roupas sociais não são obrigatórias, principalmente se você for apenas assistir a um treino. Entretanto, mais uma vez, eu me tornava a exceção do local. Talvez eu fosse a mais bem vestida, com um salto discreto e um Cardigan marrom que acentuava o grau de seriedade da minha indumentária.

Deixei as preocupações de lado enquanto observava o treino dos jogadores. Todos faziam aquilo tão bem que parecia ser fácil lidar com uma bola de futebol e chutar à gol. Um grupo de jogadores abriu rapidamente uma enorme roda e começou uma espécie de futevôlei, passando a bola para cada um que participava. No entanto, um dos jogadores do grupo me chamou a atenção. Rapidamente reconheci Heung Min Son, o camisa 7 do clube e um dos principais jogadores. Logo tive uma breve sensação de nostalgia.

O jogador era da mesma nacionalidade que eu e, olhar para ele, me fazia lembrar do país que eu estava longe há tanto tempo. Meus pais se mudaram para a Inglaterra quando eu ainda era adolescente, o que fez com que boa parte da minha juventude fosse marcada por viver em um país de uma cultura tão diferente. Tive uma boa educação, fui para a universidade e arranjei emprego em uma das maiores empresas jornalísticas do país, mas, ainda assim, parte de mim ainda era coreana. Parte de mim ainda se agarrava fortemente às minhas raízes.
Sempre que visitava meus pais, falávamos em coreano, comíamos comidas tradicionais e, quando tínhamos a oportunidade, viajávamos para a Coreia a fim de visitar outros familiares.

Olhar para Son era como olhar para um pouco do meu passado. Mas, mais do que isso, olhar para ele era uma gota de paz na rotina. Son era considerado um dos jogadores mais carismáticos que jogava na Europa, vivia sempre sorrindo e estava o tempo inteiro brincando com os membros. Era inevitável não sorrir ao olhar para ele.

Rapidamente, peguei meu celular no bolso e fiz uma foto do treino, mandando para papai. Sabia que ele adoraria saber que sua filha esteve pessoalmente no treino do seu clube de futebol favorito, entretanto, enquanto digitava animada a mensagem me distraí com um grito vindo do gramado.

-CUIDADO!

Então eu acertei algo, ou algo me acertou. Tudo aconteceu muito rápido. A cena da bola viajando a mais de 50 quilômetros por hora na minha direção congelou em minha mente. Todos pareciam ter desviado bem, no entanto, eu não consegui fazer a tempo, então recebi a bola diretamente no rosto, o que me fez cair para trás com o impacto. Antes que eu pudesse pensar em fazer algo, uma chuva de repórteres correu em minha direção, alguns pareciam solícitos em me ajudar, outros apenas seguravam suas grandes câmeras a fim de captar algo.

-Você está bem? - Um senhor de meia idade perguntou me levantando.

-Você se machucou? - Outro jornalista tocou meu ombro.

Então eu senti a dor. Um frio percorreu minha espinha com a aguda dor que vinha do alvo acertado pela bola, meu nariz. Daquela pancada era óbvio que ele tinha sido quebrado, mas o que me assustou foi a quantidade de sangue que começou a jorrar de cada narina, ensopando minha camisa branca e me fazendo entrar em desespero.

O treino todo tinha parado para ver a cena. A comissão técnica e outros jogadores já corria em minha direção com o fito de ajudar.

-O que você fez, Sonny? - Um jogador gritou para o coreano, que, aos poucos, entendeu o que tinha acabado de acontecer.

Voltei minha atenção para mim mesma e percebi a poça de sangue que se formava na minha roupa e no rosto. Me fizeram olhar para cima. Uma grande quantidade de jornalistas se revezava segurando uma toalha no meu nariz com o intuito de estancar o sangramento, outros da comissão técnica corriam com bolsas de gelo. Os jogadores se aproximaram e, entre eles, Son assistia a toda aquela correria assustado. Ele já tinha levado a mão na cabeça e era amparado por outros colegas.

Por outro lado, eu só conseguia pensar em como aquela dor era insuportável. Não sabia se gritava ou chorava de dor, pois até para chorar o nariz fraturado era afetado. Membros da comissão técnica me tiraram de lá e levaram até a emergência de um hospital na região, que tomou as rédeas da situação.

-Vou recolocar seu nariz no canto, pode ser que doa um pouco, mas você aguenta... 1, 2... - Um médico, que me atendia na emergência, falou.

Antes que ele pudesse falar o 3, ele segurou firme em meu rosto e recolocou o nariz no canto, o que acentuou a dor e me fez gritar.

-Está tudo bem agora... - O médico disse baixo, parecendo extremamente calmo. Talvez já tivesse lidado várias vezes com aquela situação. - Você ficará bem em menos de um mês.

Depois de uma bateria de exames e outros assuntos burocráticos do hospital, recebi alta e fui direto para casa.

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