O caos do dia

10 0 0
                                    

Dias depois Júlia não conseguia tirar a ideia de sua cabeça enquanto caminhava de volta para casa. Sarah tinha plantado uma semente de esperança, algo que ela não esperava, mas que agora parecia estar tomando forma dentro dela. Quando chegou em seu apartamento, sentou-se na cama e olhou para o violão encostado no canto da sala. Ele parecia tão distante, tão esquecido, como se fosse uma parte do passado de alguém que ela já não reconhecia. Mas, ao mesmo tempo, ele também representava algo que ela ainda queria ser.

A música sempre havia sido sua fuga, sua válvula de escape. Desde pequena, quando se trancava no quarto para cantar suas músicas favoritas, até as noites em que tocava até os dedos doerem. Mas o medo de ser rejeitada, o medo de fracassar, sempre a impedia de dar o passo necessário. E agora, com tantos desafios pesando sobre seus ombros, ela se perguntava: E se essa for a chance que eu estava esperando?

Ela pegou o violão com uma leveza que ela não sentia há muito tempo e o acomodou em seu colo. Os primeiros acordes surgiram de forma suave, quase hesitante, mas logo se transformaram em uma melodia familiar. Júlia cantou baixo, como se estivesse testando sua própria voz, como se a música fosse uma conversa com ela mesma.

"Eu sei que é difícil, eu sei que é demais,

Mas a vida me ensina a seguir sempre em paz..."

Ela parou de cantar por um momento, sem acreditar no que estava fazendo. As palavras ecoaram em sua mente. Estava cantando como nunca antes. De alguma forma, naquele momento, ela sentiu que as canções a conectavam novamente com o que realmente importava.

O som do violão foi interrompido pela campainha da porta. Júlia deu um salto, ainda tentando se recompor, e foi até a porta. Quando abriu, encontrou Sarah do outro lado, com um sorriso impaciente.

— Então, você decidiu tentar, né? — Sarah perguntou, com um brilho de animação nos olhos. — Está pronta para a audição?

Júlia não tinha mais a mesma hesitação que antes. Ela se sentiu tomada por um impulso, como se aquela fosse a única chance de fazer algo que realmente a fizesse feliz.

— Eu vou, Sarah. Eu vou lá. — respondeu Júlia, com uma nova determinação em sua voz.

Júlia estava atrás do balcão da lanchonete, com as mãos apressadas, tentando organizar a fila de pedidos que parecia não ter fim. O dia estava quente, e o cheiro de café fresco misturado com o pão recém-assado preenchia o ambiente. Sarah estava na cozinha, gritando para que as fritadeiras não queimassem a batata e mexendo nas panelas com um ritmo frenético.

– Julia, não se esquece da mesa 3! – Sarah gritou de volta, com um sorriso cansado.

Júlia acenou, já tão acostumada com o caos da lanchonete que quase conseguia se mover automaticamente entre as mesas e os pedidos. Ela estava exausta, com os olhos pesados de tanto trabalhar, e o peso de sua realidade parecia pesar cada vez mais. O aluguel do apartamento estava atrasado há oito meses, e hoje era o dia final para regularizar sua situação. Senhor Bahiense, o proprietário do prédio, havia sido claro: ou pagava, ou era despejada.

Era uma constante pressão, o medo de perder o único lugar que chamava de lar, um cantinho no qual ela havia investido tantas horas de trabalho, tantas esperanças. Mas as contas não paravam de acumular, e a lanchonete, com seu salário irrisório, não era suficiente para cobrir tudo.

Ela passou por mais uma mesa, tentando manter o sorriso no rosto. Então, de repente, um som de algo quebrando ecoou pelo restaurante. Júlia virou-se na direção do barulho, apenas para ver a máquina de café — uma das mais caras da lanchonete — despencando do balcão e se espatifando no chão.

– Não! – ela gritou instintivamente, as palavras saindo de sua boca sem pensar.

O caos foi imediato. O café quente começou a se espalhar pelo piso, e as pessoas na fila se afastaram rapidamente, com olhares horrorizados. A gerente, Dona Gilda, apareceu da cozinha com os olhos arregalados, seu rosto já corado de raiva.

– Julia, o que você fez? Essa máquina foi caríssima! – Dona Gilda exclamou, completamente descontrolada.

Júlia sentiu o coração apertar. As palavras de Dona Gilda eram duras, mas o que mais a atingia era o peso do que estava acontecendo na sua vida. A dor da possibilidade de ser despejada, o medo de não ter mais um lugar para ir, tudo isso se misturou ao pânico que tomou conta de seu peito.

– Eu... eu não fiz nada, a máquina simplesmente... – ela gaguejou, tentando justificar, mas sabia que as palavras não faziam sentido diante do desastre que acabara de acontecer.

Sarah, que havia saído correndo da cozinha, tentou ajudar a limpar o café derramado, mas nem isso parecia suficiente para acalmar a situação. Júlia estava paralisada, olhando para o pedaço de metal e vidro no chão, e seu estômago revirava. Ela queria desaparecer, sair correndo, mas sabia que não podia. Não poderia deixar Sarah sozinha para lidar com a bagunça, mas também sabia que aquele desastre só pioraria as coisas.

Dona Gilda se aproximou dela, o rosto vermelho de raiva.

– Isso vai sair do seu salário, você sabe, não sabe? – ela disse, sua voz fria e implacável.

Júlia engoliu seco, tentando controlar a respiração que estava se tornando difícil. Ela olhou para o relógio: faltava uma hora para o horário marcado com Senhor Bahiense. Cada minuto que passava parecia como uma contagem regressiva para o pior.

Sarah, vendo o desespero nos olhos de Júlia, foi até ela e colocou uma mão em seu ombro, tentando oferecer um mínimo de consolo.

– Vai dar tudo certo, Júlia. Vai dar certo. – Sarah disse, sua voz suave, embora estivesse visivelmente preocupada.

Mas Júlia sabia que não era verdade. Ela não sabia como tudo isso iria terminar, mas sentia que seu mundo estava desmoronando. O aluguel, o trabalho, a máquina quebrada... e aquele dia parecia nunca ter fim.

Com a respiração ainda ofegante, ela pegou um pano para limpar o café derramado, mas seus olhos estavam fixos no telefone, onde a mensagem de Senhor Bahiense estava à espera. Ela não sabia o que fazer. Júlia segurou o celular em suas mãos, o número do Senhor Bahiense piscando na tela. Ela olhou para ele por alguns segundos, respirou fundo e, com um suspiro de alívio, desligou a ligação. Não podia mais lidar com as ameaças dele, não hoje. O peso da dívida ainda a atormentava, mas ela precisava de um tempo para pensar, para encontrar uma saída.

Foi quando ela ouviu o som da porta se abrindo. Dona Gilda entrou na sala, e Júlia sabia que não poderia mais adiar a conversa. Sua cabeça estava a mil, mas ela precisava ser direta.

— Dona Gilda, eu realmente não sei o que fazer. Eu... Eu entendo a cobrança pelo pagamento da máquina de café, mas eu não tenho como pagar agora. A situação está muito difícil para mim. Eu só... — Júlia parou, buscando as palavras certas. — Por favor, tente entender. Não é que eu não queira, é que não tenho como.

Dona Gilda olhou para ela com uma expressão de pesar, mas sem sinais de indulgência. Ela sabia das dificuldades, mas também sabia que regras eram regras. E elas não podiam ser quebradas.

— Júlia, eu sinto muito pela sua situação, de verdade. Mas, como já te expliquei, eu não posso fazer exceções. A dívida precisa ser paga. Ou você paga o que deve pela máquina de café, ou... você vai ter que sair sem seus direitos, sem poder aproveitar o que conquistou até aqui. Não há outra alternativa.

Júlia sentiu o peso daquela sentença, como se suas esperanças estivessem desmoronando em um instante. Ela abaixou a cabeça, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair.

Mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Sarah apareceu na porta, com aquele seu olhar determinado, como sempre.

— Júlia, sobre a audição no bar... Não se esqueça. A oportunidade está ali, à sua frente. Talvez seja a chance que você precisa para mudar as coisas. Não deixe passar.

Aquelas palavras despertaram algo dentro de Júlia. Talvez fosse exatamente isso o que ela precisava: uma chance. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia que o risco era grande, e as consequências de fracassar poderiam ser ainda mais pesadas. No entanto, ela não tinha muitas opções.

Com um último olhar para Dona Gilda, Júlia se levantou lentamente.

— Eu vou tentar. Obrigada, Sarah. E, Dona Gilda, eu... eu entendo.

Sem mais palavras, ela saiu, o peso de sua decisão a acompanhando, mas também a esperança de que aquela audição poderia, talvez, ser a virada que ela tanto precisava.

Por Acaso AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora