Irina desviou novamente os olhos da folha de seu diário. Um pouco de sol entrava pela fresta da cortina, ressaltando o verde e o bege do tapete que cobria boa parte do quarto de Ezequiel, mas antes passando pela cadeira da escrivaninha e esquentando o assento que provavelmente seria usado dali algum tempo. A observação parou sobre a cama, onde seu irmão mais novo dormia em uma mistura de lençóis e cabelos pretos amassados sobre o travesseiro branco.
Ela tentou se concentrar outra vez na página e ouviu um resmungo, no mesmo instante olhando para a cama. Ezequiel virou-se e voltou a cara para a parede, ainda adormecido. A bruxa tomou mais alguns instantes para então retornar à sua escrita, tentando retomar o raciocínio interrompido.
Não era como se seu dia anterior tivesse algo de extremamente empolgante para relatar. Talvez o ponto alto tivesse sido ganhar uma partida de xadrez contra Ezequiel, que ainda dormia serenamente à sua frente.
Precisava dizer que, com exceção de momentos pontuais, não era como se sua vida fosse interessante o suficiente para preencher páginas e páginas de um diário. Tomara aquele hábito de uma de suas amigas, que realmente tinha algo para relatar com sua vida social movimentada. Após o casamento recente, ela provavelmente viveria alguns meses monótonos, no entanto, conhecendo-a como bem conhecia, não demoraria muito para que a agitação retornasse.
Sua amiga, sim, teria algo de interessante a relatar para as futuras gerações ou algo que pudesse ser estudado por sabe-se lá quem, enquanto ela... Bem, talvez alguma pessoa se interessasse por ler páginas e páginas de tédio, reclamações e seus solilóquios sobre medos e ansiedades. Ou sobre um irmão com uma doença desconhecida.
Irina molhou a pena no vidro de tinta ao seu lado sobre o divã, tomando todo o cuidado para não sujar mais o tecido, pois a última marca ainda estava lá para recordá-la do acidente.
— Haverá um dia em que eu vou acordar aos berros com você no meu quarto e em seguida morrer do coração — Ezequiel disse de repente, fazendo-a se esquecer da pena e do papel.
Ela viu o irmão sentando-se no meio dos lençóis, os cabelos pretos adoravelmente amassados para o lado esquerdo e os olhos escuros piscando mais do que o normal, provavelmente ainda mediando entre o mundo dos sonhos e a consciência.
— Não seria nada mal para despertar certas pessoas dessa casa. — Com certa acidez matinal, ela fechou o diário e deixou os objetos sobre o divã colado à parede oposta à cama.
Ezequiel riu.
— Como passou a noite? — Irina viu o sentar-se na ponta da cama, tirar as pernas da cobertura dos lençóis e esticar o braço para a mesinha logo ao lado. — Você parecia um pouco agitado agora de manhã.
— Não precisa se preocupar, eu mesmo ponho. — Ezequiel se adiantou. — Acreditaria em mim se eu dissesse que sonhei ser capitão de um navio pirata, no meio de uma batalha contra navios ingleses a caminho das Índias?
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Dualitas (DEGUSTAÇÃO)
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