Capítulo 31 - Sem-teto

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A TRANSMISSÃO DA TV cortou o link ao vivo no exato momento em que um novo blindado da tropa de choque chegou ao local e os seus soldados começaram a disparar balas de borracha contra os moradores do conjunto habitacional abandonado.

Há dois anos, aquele prédio já estava condenado pela prefeitura e dizia-se que ele seria implodido para que fosse construído um estacionamento em seu lugar. Pelo menos cinco famílias moravam nos andares superiores, sobrevivendo com "gatos" nas fiações elétricas e com água encanada de péssima qualidade. Nenhuma delas tinha outro lugar para ir e usavam o teto sobre as suas cabeças para se proteger das intempéries climáticas, para que não vivessem diretamente na rua. Não havia trabalho na cidade para essas famílias, logo, elas viviam de "bicos" que arranjavam ou qualquer atividade que lhes rendesse uns trocados. Como Silmara e o seu pai que trabalhavam para a Corporação.

Logo que a programação dominical padrão substituiu a cobertura em tempo real da desapropriação do conjunto habitacional, eu corri para o meu quarto onde vesti uma calça jeans e calcei um par de tênis. Não dava para ficar de braços cruzados em frente à TV vendo aquelas pessoas sendo escorraçadas do seu único lar. A minha mãe tinha percebido o meu desconforto com a matéria jornalística e me perguntou, assim que cheguei à porta de saída:

— Onde você está indo, Henrique?

— Uma amiga minha precisa de ajuda. Eu preciso ir até lá!

— O que você tem a ver com esses vagabundos que ocuparam esses prédios sem permissão?

Não dava tempo de responder àquele comentário preconceituoso e eu simplesmente saí, caminhando até o ponto de ônibus.

A condução na periferia costumava ser lenta nos finais de semana, por isso, levei quase meia-hora para chegar até o centro da cidade. Quando desembarquei bem próximo da Pet Shop cujo teto eu havia usado certa vez para me esconder dos guardas da Xeque-Mate, ainda havia vestígios da guerra civil que tinha atingido as ruas há pouco tempo.

O cheiro do gás lacrimogêneo da polícia ainda pairava pelo ar e, por onde se passava, dava para ver pedras, garrafas e pedaços de pau usados no conflito espalhados pelo chão. Cortei caminho pelo beco atrás da Xeque-Mate, onde conheci a Silmara e, conforme me aproximava da avenida que cruzava a frente do conjunto habitacional onde ela morava, já dava para ver o caos.

As paredes dos três prédios velhos estavam bem castigadas com buracos de bala e marcas de fogo dos coquetéis Molotov que tinham sido atirados. Cavaletes fechavam o acesso às portarias, enquanto soldados da tropa de choque montavam guarda em frente. A calçada diante dos prédios tinha sido interditada momentaneamente e ninguém conseguia passar por ali, nem mesmo os curiosos que se amontoavam em volta. Tinha pelo menos quatro carros blindados da PM estacionados na esquina adjacente, perto da faixa de pedestre usada para alcançar o outro lado da rua onde eu estava. Não havia nenhum sinal dos moradores do conjunto ou de outras pessoas em situação de rua das imediações que se juntaram ao protesto.

Eu encontrei Silmara a cinco quadras dali. Ela estava sentada atrás de uma caçamba de lixo, perto da saída dos fundos de um restaurante chinês. O cheiro de peixe e de resíduos em decomposição se misturavam naquele beco. Quando me aproximei dela com cautela, notei que estava ferida. Haviam cortes nos braços nus e um hematoma no rosto ossudo era evidente.

— Silmara?

A menina deu um sobressalto ao ouvir a minha voz e colou as costas na parede imunda atrás dela com os olhos arregalados a me encarar. Ela nem sequer tinha notado a minha aproximação. A sua aparência era ainda mais lastimável do que da última vez que a vi.

— Quem... Quem é você? Fica longe! FICA LONGE!

O berro dela ecoou naquele beco. A porta dos fundos do restaurante ao seu lado se abriu de repente e um funcionário colocou a cara para fora. Um gato vira-latas de pêlo rajado saiu de dentro de um latão de lixo no mesmo momento e correu assustado. O chinês nos encarou ali próximo da saída do seu trabalho. Bastante agitado, ele pronunciou alguma coisa em seu idioma nativo e eu não entendi nada. Assim que bateu a porta e sumiu de volta ao restaurante, me aproximei mais de Silmara.

Pássaro Noturno - A Saga da CorporaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora