AS MINHAS PERNAS tremiam à medida que eu descia os degraus de ferro maciço em que os meus pés pisavam um a um rumo ao desconhecido. Em tantos anos morando naquela casa de esquina entre a avenida Gomes Brossard e a rua Teixeira Barreto, eu jamais havia notado que algo se escondia sob o velho carpete que sempre estivera estendido no chão. Como imaginaria que um alçapão com acesso a um porão estaria escondido debaixo do Voyage 1988 do meu pai todo aquele tempo?
A bateria da lanterna estava prestes a acabar quando toquei o solo áspero que se estendia num corredor de quase dez metros à frente e, para a minha surpresa, uma fileira de luzes automáticas foram se acendendo sobre a minha cabeça, ofuscando temporariamente a minha visão e iluminando o caminho. As lâmpadas frias tinham se ligado quando a minha presença acionou uma espécie de sensor de movimento instalado logo abaixo da escada de ferro. Eu ainda não tinha firmeza nas pernas quando comecei a caminhar pelo corredor não muito estreito, com algo em torno de três metros de largura. Alcancei uma porta aberta em formato retangular disposta ao fim do corredor no exato momento em que as luzes às minhas costas se apagaram e novas se acenderam em minha frente, revelando uma das coisas mais impressionantes que eu já tinha visto até então.
— Isso não pode ser verdade!
As luzes automáticas tinham afetado os meus olhos me fazendo enxergar pontos escuros por algum tempo, mas nem mesmo a desorientação das minhas retinas podia explicar a visão que eu estava tendo. Pé após pé eu fui adentrando o salão que se estendia numa espécie de caverna tecnológica por uns vinte, talvez trinta metros quadrados à frente. Telas, projetores e equipamentos que eu nem sabia denominar começaram a se ligar automaticamente diante de mim conforme eu caminhava. Luzes vermelhas e predominantemente azuis eram projetadas de painéis metálicos fixados linearmente à parede da caverna do lado esquerdo de quem adentrava. O som de máquinas sendo acionadas e se movendo sozinhas preenchia o espaço ecoante. E o cheiro no ar frio dali era de futuro.
— Eu devo ter batido a cabeça. Isso é impossível!
As paredes do salão subiam até se perder num negrume cortado por lâmpadas estrategicamente instaladas numa teia estrutural metálica que as conectava quatro metros acima e o teto do lugar estava maciçamente coberto por concreto e argamassa. Placas presas no concreto com as mesmas dimensões do alçapão da garagem, mas feitas de uma espécie de alumínio brilhante, rangiam um tipo quase inaudível de ruído metálico. Pareciam coletar algum tipo de energia.
— Pela distância que cobri por debaixo do chão da garagem... Esse lugar deve estar bem embaixo da lavanderia da minha mãe.
Não havia qualquer fiação elétrica evidente naquelas paredes, mas os equipamentos pareciam funcionar normalmente alimentados pela energia que as placas no teto coletavam. Eu ainda estava chocado em saber que tudo aquilo estivera escondido embaixo da minha casa por anos sem que ninguém soubesse quando parei para observar o meu entorno com um olhar um pouco mais frio.
Logo depois da entrada retangular por onde eu tinha passado, onde no alto um led redondo piscava sinalizando que outro sensor de movimento estava ativo, havia um console metálico inclinado conectado a uma tela muito fina e quase transparente. Sensível ao toque, a tela parecia feita de cristal, e ela se iluminou quando o meu indicador encostou em sua superfície. Vi a minha impressão digital crescer de tamanho e se multiplicar na projeção da tela que devia ter umas setenta e duas polegadas e, em seguida, um pequeno quadrado no canto inferior direito da tela começou a piscar na tela escura. Havia a representação da minha digital dentro do quadrinho e, abaixo dela, duas palavras em um dialeto estranho brilhavam num azul ciano.
— Em que idioma isso está escrito?
O console inclinado tinha uma espécie de teclado na parte superior e vi em alguns botões daquele conjunto os mesmos símbolos que piscavam abaixo da minha digital. Curioso, apertei algumas das teclas e foi mágico quando um diagrama gigantesco surgiu diante dos meus olhos na tela. O desenho em três dimensões era uma representação gráfica da própria caverna subterrânea. Mostrava desde a escada de ferro por onde eu tinha descido até o fundo da instalação. Pela primeira vez, reconheci algumas palavras em inglês no diagrama e, seja lá quem tivesse projetado aquele lugar, tinha esquematizado para que ele fosse uma espécie de depósito ou esconderijo.
— Mas para esconder o que exatamente?
Meu inglês era bem básico naquela época, mas consegui identificar as palavras "painel de controle" e "matriz de impressão" em meio ao caça-palavra de instruções disposto na tela. A tal da matriz tinha feito os sons metálicos que eu tinha ouvido logo que entrei e era algo inexplicável à primeira vista.
Com dois metros quadrados, a máquina estava fixada na parede do salão por dois tubos de aço. Uma vidraça transparente do lado de fora, feita do mesmo cristal que a tela do primeiro monitor, permitia ver na parte interna uma plataforma suspensa de formato retangular com cinco centímetros de espessura servindo de base. Dois braços hidráulicos saíam de fora da caixa e repousavam os seus "dedos metálicos" na plataforma parecendo aguardar alguma espécie de comando para agarrarem ou apanharem algo. Barras laterais nas duas extremidades da caixa apresentavam três feixes lasers cada uma, posicionadas como se pudessem avançar sobre a plataforma e cortar o que ali repousasse. O brilho vermelho dos feixes era hipnotizante a olho nu.
— Matriz de Impressão? Que tipo de impressão essa máquina faz? Objetos sólidos?
Nada que estava naquele subsolo era minimamente inteligível para mim. Lá em cima, na casa dos Harone, nós ainda assistíamos filmes de fitas VHS em nosso videocassete e a nossa TV de vinte polegadas ainda era de tubo. O equipamento mais tecnológico que possuíamos era um micro-ondas na cozinha e toda aquela tecnologia secreta no subsolo parecia muito à frente de meu tempo. De qualquer tempo.
Assustado com todas aquelas informações, eu me vi fugindo daquela caverna e, quando percebi, estava de volta à garagem de casa fechando o alçapão e o ocultando sob o carpete velho novamente numa tentativa infantil de fazer tudo aquilo sumir. Lá fora, a noite caía intensa sob o bairro. A minha mãe já devia ter retornado do trabalho.
O dia seguinte passou incrivelmente lento enquanto a minha mente me levava de volta para o salão secreto embaixo de minha casa o tempo todo. Eu tinha muitas dúvidas sobre a origem daquelas máquinas. Como aquilo havia parado ali e, em especial, quem havia sido o responsável? Pensar naquilo estava me fazendo pirar, mas eu não conseguia parar.
— Será que, de alguma forma, o meu pai tem algo a ver com isso? Ele sabia da existência daquele lugar? O seu sumiço estava ligado aos equipamentos ocultos ali embaixo?
Durante o almoço, eu decidi sondar a minha mãe para tentar colocar minhas as ideias em ordem. Tentando não levantar suspeitas ou questionamentos, perguntei a ela sobre a imobiliária que havia vendido a casa para o meu pai anos atrás, mas a resposta era vaga demais.
— A imobiliária vendeu apenas o terreno para o seu pai. Ele vinha supervisionar a equipe que construía a casa enquanto nós ainda morávamos em São Paulo.
— Então não tinha nada aqui quando ele chegou à São Francisco d'Oeste além do nosso terreno?
— Não, nada. — respondeu a dona Cecília, direta. — Essa ainda era uma área pouco habitada. Tinham poucos vizinhos que já moravam aqui na Teixeira Barreto.
Carina tinha acabado de enfiar um punhado de macarronada na boca quando falou:
— Por que quer saber isso, mano?
— Não fala com a boca cheia, mal-educada! — advertiu a minha mãe franzindo o cenho. — Mas é sério agora. — Voltou-se ela para mim. — Qual o motivo desse interesse na casa agora, Henrique?
Eu não tinha uma resposta objetiva e improvisei uma das minhas desculpas esfarrapadas para sair logo do assunto. O meu pai tinha demorado dois anos entre o começo da construção da casa até a nossa mudança, o que indicava que, talvez, ele já soubesse o que havia abaixo do terreno. Por mais que a estrutura estivesse escondida subterraneamente, era muito improvável que ele ou algum dos engenheiros não tivessem descoberto a caverna enquanto escavavam para as fundações. A passagem embaixo da garagem estava posicionada estrategicamente demais para que tivesse sido obra do acaso. Assim sendo, o que o meu pai estaria fazendo em segredo com aqueles equipamentos todo aquele tempo? E, por que depois ele os teria abandonado?
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Pássaro Noturno - A Saga da Corporação
AksiHenrique Harone é um jovem suburbano que leva uma vida pacata na cidade de São Francisco d'Oeste, interior de São Paulo. Quando encontra no subsolo da casa onde mora uma tecnologia além da sua compreensão, ele decide dar asas à sua imaginação juveni...