Ele não era muito bom de memória. Pelo menos não formalmente. Digamos que ele certamente não lembrava de seu próprio número do celular. Mas, por um lapso, seria capaz de lembrar do número da placa de um ônibus que houvesse pego, em um dia qualquer. É, ele era assim...
Naquela hora, fez memória de como foi ter chegado ali. Não havia sido proposital, eles não haviam planejado aquele local, aquela pausa. Aliás, eles não haviam planejado estar no labirinto. Talvez nem perceberam quando entraram, ou talvez já estivessem dentro dele quando perceberam se tratar um labirinto. Digamos que não havia uma placa na entrada: 'Bem vindo ao Labirinto! Entre e boa sorte, não há registro de sobreviventes'.
Perceber que o labirinto era, de fato, um labirinto, parece não ter agradado àquelas paredes. Elas foram programadas para não serem percebidas. E terem sido descobertas por dois adolescentes inconsequentes (porque era isso que eles eram ao entrarem), parecia irritar aquelas paredes que tinham vida.
- Estávamos fugindo... - ele lembrou.
Uma lágrima riscou o rosto dela enquanto sua mão buscava a dele. Ela sentia-se tão feliz por tê-lo ali.
- Eu estava com medo... Eu estava sozinha.
- Minha cara estava horrível - ela riu. E você era tão irritante... Argh!
- Você é que era estranha - ele devolveu.
Rindo, começaram a se empurrar com o peso do corpo.
- Eu sou estranha. E, convenhamos, se não fossem minhas estranhezas, não teríamos chegado tão longe.
Aquelas palavras já haviam sido ditas tantas vezes, mas sempre era divertido para eles lembrar as características um do outro de um jeito nada sutil ou delicado.
- São tantas histórias em um espaço de tempo que parece tão curto. Ás vezes não consigo organizar minha memória para contar tudo que vivemos, é muita coisa - ela diz.
- Por isso as algas do meu cérebro são seletivas!
- Uhum, e por isso você me tem - ironizou.
Ela continuou lembrando de como, no começo, eles deixavam plaquinhas pelos lugares onde passavam. Lembrou-se das vezes que tentaram fazer contato com as pessoas que não estavam no Labirinto, e de como foram mal interpretados, ou não interpretados.
O Labirinto era, ao mesmo tempo, o lugar mais perigoso e o mais seguro para eles. Eles se esbarraram na entrada enquanto fugiam de si, e lá foi justamente o lugar onde se encontraram, em todos os sentidos que a palavra "encontro" pode ter.
Nada era seguro naquele dia, ou naquele período. Dentro do labirinto o tempo é diferente. Cada um tem o seu próprio tempo. O importante é que ambos estavam correndo risco. O labirinto é conhecido por ter vontade própria. É um espaço que tem por objetivo manter as pessoas perdidas dentro dele. Claro, ele fica mais forte quanto menos se sabe sobre ele. Por conta disto, a maioria das pessoas preferem não acreditar que ele seja real. É mais 'seguro' deixar ele ir agindo sem que se perceba.
No entanto, os dois haviam visto 'além do permitido'. Isto fez eles se tornarem as vítimas preferidas do labirinto. Como se viesse acompanhados uma dose extra de 'mostarda' ou 'molho barbecue'. O labirinto já teve que lidar com pessoas como eles, mas elas são raras. O labirinto não desistiria de executar seu trabalho. Mas cometeu um sutil vacilo. Talvez alguém, maior que os dois, maior até que o labirinto, estivesse interferindo de alguma forma. Porque, para a infelicidade do labirinto, os dois se encontraram.
Mais que isso, os dois descobriram que era possível fazer o labirinto trabalhar para eles, o que, a princípio, só tornou as coisas mais complicadas. Usar do labirinto exigia um nível de (re)conhecimento muito alto, mas que os dois se dispuseram a pagar, desde que estivessem juntos. Sempre encontravam no outro o que estava faltando em si, ou, então, juntos sempre arranjavam uma forma de conseguir o que precisavam.
Observaram que as paredes de cada corredor sempre eram diferentes. Certas vezes o escuro absoluto os obrigava a apoiar-se nelas para continuar, por isso, ambos traziam nas mãos cicatrizes de cortes e arranhões, porque algumas paredes eram espinhos ou estavam revestidas por vidros quebrados. Aliás, as cicatrizes não estavam apenas nas mãos, cada marca era a história de um monstro diferente que foi enfrentado.
Eles descobriram, mais tarde, que os monstros eram frutos de sua própria criação. Eram frutos de suas histórias. Não eram monstros imaginários, eles realmente existiam. No entanto, eram criados a partir das experiências de vida que tiveram. A aparência destes monstros, seus tamanhos e habilidades perigosas, tudo isto, era produzido por eles mesmos. E não podiam desfazê-los, afinal, eram concretos.
Demorou muito tempo para compreenderem que a magia do labirinto permitia que estes monstros fossem criados. E demorou mais ainda para compreenderem que os monstros eram criados de seus próprios medos. Era fácil perguntar "de onde vêm estes monstros?" ou "quem está mandando-os atrás de nós?". No entanto, só conseguiram descobrir após muito caminhar. Foi assim que se encontraram, ambos fugiam de seus próprios monstros, enquanto a magia do labirinto aproveitava para fazê-los se perder. Mas, fez com que se achassem.
Ela lembrou daquele dia no início dessa jornada, em que depois de arremessar nos monstros quase tudo que traziam na mochila, ou que encontravam pelo caminho, ele parou de repente. Estavam cansados, roupas em farrapos, sem se alimentarem bem há dias e os monstros não davam folga. Ela ainda trazia muito medo no olhar, já ele estava preocupado, mas menos agitado, um momento raro naquela época em que o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade) dava as caras todos os dias.
Ele parou de repente. Depois de trombar e reclamar sobre como eles tropeçavam muito, ela viu o que impedia de seguir o caminho: um rio, que não parecia tão grande, mas ficara imponente depois de dias seguidos de chuva. Por sorte havia uma ponte, por azar, estava submersa. Em poucos segundos ela retomou o ritmo e maquinou várias possibilidades de atravessar o rio com o mínimo de segurança. Parar não era uma opção, não para ela.
- Vamos! O que você está esperando?
- Nós precisamos esperar a água baixar. Vou acender uma fogueira, tenta descansar, a grama aqui está seca.
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Entre nós
RomanceUm conto juvenil para viajar nas aventuras do inconsciente. Venha ver as armadilhas que a mente humana prega e as formas criativas de vencer estes desafios na vida de dois personagens que podem parecer com você. Qualquer semelhança com a vida de alg...