Parte IV

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A memória escorregou nas palavras dos dois. O olhar deles voltou a fitar o caminho que seguia. Mochila nas costas e muita história para contar.

- Aqueles sonhos tiravam minha vontade de dormir. Me rendia só pelo cansaço mesmo - ela lembrou - Confesso que desde que começamos a entendê-los, as vezes me esforço muito para não lembrar o que sonhei.

- Você é "consciente" demais. Mas eu entendo que para uma cabeça que faz cinco planos por segundo, seja complicado não controlar o que acontece aí dentro.

- Feliz aquele que encontra um semelhante que lhe assegure chorar ou sorrir sem ser incompreendido! - os olhos dela brilharam enquanto recitava a frase - Nossa! Lembrei! Esse foi o primeiro presente que nossa amizade me deu. Espaço e compreensão.

- A recíproca é verdadeira! - ele adorava repetir essa frase.

Já haviam caminhando por quase 5 horas. Ele sugeriu descansarem um pouco, ela, ainda mais apta ao movimento, cedeu só depois de alguma insistência. Procuraram o lugar menos desconfortável para sentar.

- Eu sempre tive mais medo do meus monstros do que dos seus - concluiu ela se agarrando na linha da memória anterior. - Para os seus, eu sempre tinha uma sugestão de como enfrentar, já os meus, de tanto ignorá-los eles invadiram meus sonhos.

- É que os meus não têm tanto poder de te machucar, e vice-versa. A dinâmica aqui é essa, afinal. Por isso o labirinto só é seguro quando estamos acompanhados.

- E você é uma ótima companhia! - ela sorriu. - Não sempre, mas em parte considerável do tempo, sim.

- Isso foi o troco por aquele galho na sua testa? - ele retrucou.

Ela riu.

- Você também é uma ótima companhia - ele continuou - tirando as horas em que você me reflete demais.

Ele sorriu encabulado, como quem diz uma verdade com o máximo de carinho sutil possível.

Continuaram o caminho e era estranho não ter nenhum monstro à vista. Já havia muito desde que tinham comido os Marshmalows remanescentes e haviam partido ao raiar do sol, deixando para trás seus vestígios - cinza de uma fogueira, embaixo de uma árvore à beira de um rio, agora em seu volume natural. Somente quando o sol surgiu foi possível ver que o rio havia baixado o volume e permitido o acesso à ponte.

Ele estava pensando que foi sorte não ter aparecido nenhum monstro na noite anterior. Mas no labirinto o fator sorte é quase inexistente. Havia Alguém maior que o labirinto? Alguém que pudesse mantê-los seguros em algumas situações? Esses pensamentos giraram na cabeça dele enquanto seus pés, mecanicamente, eram diplomáticos consigo mesmos, permitindo que um fosse à frente do outro, numa valsa constante desta diplomacia.

Ela caminhava ao lado dele, também envolta em pensamentos. Esta seria uma hora ideal para os monstros aparecerem. Quando eles pensavam muito, a energia cinética dos pensamentos e memórias, eram quase uma alimento protéico para o labirinto. Mas, estranhamente, não havia nenhum monstro ao alcance dos olhos.

Esta era a grande cilada. O fato de não estar ao alcance dos olhos, não significa que não houvesse monstros à espreita. Eles, já deviam saber disso. Mas saber não mudava muita coisa, de qualquer forma, os sentimentos sempre embaraçavam a visão e os fazia recomeçar a cada batalha.

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