Parte III

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Foi um choque. A mente veloz dela fez tantos questionamentos que em questão de segundos as palavras fluíram em tom bem mais alto que o de costume. "Como ele poderia cogitar parar depois de terem corrido tanto? Depois de escaparem por pouco várias vezes. Fugir era complicado e exigente demais para, de repente, ele resolver parar. Descansar? Era impossível, com monstros espreitando? Não! Ela poderia aceitar aquela proposta, era sem cabimento", pensou ela.


- Não! Não e não! - ela chorava e gritava enquanto esmurrava o peito dele. - Eu não vou morrer aqui, eu não quero parar, seremos pegos! Como você pode pensar nisso?


Mas ninguém a conhecia tão bem quanto ele. Certo de que logo as forças dela acabariam, ele esperou. Logo depois ela desmoronou num abraço, deixando escorrer de si todo medo que a mantinha sempre em movimento.


- Vou acender a fogueira e fazer café. É só o que temos pra hoje.


- Eu não gosto de café. E gosto menos ainda da ideia de monstros nos alcançando.


Ele riu.


- Como você consegue? - ela murmurou revoltada.


- Eu tive uma ideia - ele disse com tranquilidade.


- Também não tenho certeza se gosto da suas ideias enquanto lutamos.


- Talvez você apenas não goste do fato de que a ideia não é sua. - Depois de um silêncio breve, ele continuou - Você pode seguir se quiser, eu irei com você, mas acho seguro ficar aqui, não ficaria se não achasse. Arriscado? Sempre é. Mas talvez agora descubramos uma arma nova que nos dê mais chance de ganhar sem ter que lutar tanto contra os monstros que nós mesmos criamos. E eu vou conseguir chocolate quente pra você, prometo.


- Qual é sua ideia? - ela disse já sem graça e sem força. - Pode ao menos me contar.


- Sim! É simples: se os monstros aparecerem, os chamaremos para um café e conversaremos. Todos nós.


Antes mesmo que a fogueira estivesse acesa ela adormeceu aninhada nas mochilas quase vazias. Não se sabe se foi por medo, raiva ou cansaço. E, como em quase todas as noites do labirinto, sonhou.


Ela dormia exausta, seu rosto simbolizava isto. Era um sonho profundo. Embora estivesse dormindo, seu rosto elaborava expressões como se ainda estivesse em batalha.


- Ela deve estar sonhando - ele falou para si mesmo em meio tom.


Ele encontrou alguns pedaços de galhos e começou a lapidá-los até que se tornassem espetos. Precisariam deles para assar alguns marshmalows que, sabe-se lá porquê, estavam na mochila dele. Talvez ela tenha colocado, ou eles tenham trocado algumas coisas sem perceber. Não é fácil correr de monstros e selecionar o que poderia ser utilizado como munição ao mesmo tempo.


Perto do rio, havia uma grande árvore, uma copa enorme, abaixo da qual ele resolveu acender a fogueira. Ao olhar a árvore ele lembrou de uma época em que, já dentro do labirinto, ele passou muito tempo preso ao tronco de uma árvore. Sentia-se perdido, o único movimento que conseguia executar era girar em torno de um enorme tronco de Baobá.


Olhou para a árvore, olhou para ela. Ele estava envolto numa espécie de névoa que o prendia àquela situação. Ele não conseguia ver nada além. Ele também já esteve cansado, com medo, sem direção, preso ao que seus olhos eram capazes de ver. A presença dela foi seu único vínculo de equilíbrio. Conversar com ela, ter alguém além daquele tronco de Baobá, foi fundamental para que ele começasse a quebrar a magia que o vinculava ao movimento circulatório infinito. Ter oitenta anos e caminhar com bengala ou andar, em torno de um Baobá - que possui um tronco enorme - não é uma boa perspectiva quando se pensa em aposentadoria e fim da vida.


Mas, por tê-la, ele conseguiu sair daquela magia que o labirinto lhe havia imposto. Ela também sofreu com ele, ela perdeu a paciência, ela quis desistir, ela poderia ter desistido. Mas não o fez. Ela permaneceu com ele. E agora, ele não poderia tê-la deixado também.


Ela estava cansada, o labirinto consegue bagunçar as sensações e os sentimentos. Esta era mais uma característica do labirinto. As emoções ficam maiores, mais intensas. A dor é quase agonia. O medo, é quase desespero. Mas a alegria, é quase êxtase. A amizade, é quase amor eterno. A tranquilidade, parece uma paz celestial. A questão é que quando se tem monstros lhe procurando e ciladas a cada passo, inevitavelmente o medo e a dor são mais fáceis de surgir do que a paz. Mas eles conseguiram a amizade, e ela lhes dava alguma espécie de esperança.


Sua pupila se contraiu novamente. Ela havia dilatado enquanto ele viajou nesta memória. Ele tinha essas nuances, suas memórias poderiam se tornar histórias, bem reais. Acontecia como se ele sonhasse acordado. Isso o deixava com a guarda baixa, em uma batalha. Por outro lado, era o que lhe concedia força extra em determinadas situações. Ele revivia sensações como se fossem agora. E aprendera a controlá-las. Ele manipulava algumas de suas sensações.


- Talvez eu possa manipular os monstros - pensou ele em voz alta! E retomou a realidade.


Ele não sabe quanto tempo durou este transe. Mas ela havia aberto os olhos.


- Manipular o quê? - disse ela com voz de sono.


- Ahn? Você estava sonhando? - ele perguntou, colocando alguns marshmalows no espeto artesanal.

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