Capítulo IX - O Amigo

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               HOB GADLING SENTE A brisa marítima afagar seu rosto moldado com uma farta barba desgrenhada enquanto o Sol queima a sua pele, sem trégua, com o sal do mar ressecando os seus lábios que já não sentem o frescor da água potável há dias... Ainda assim, é neles que um sorriso largo de felicidade nasce, ao passo que o homem mantém os olhos fechados para não esquecer a sensação de sentir-se livre de verdade.

Há quanto tempo não viajava numa grande nau pirata, cheia de bucaneiros armados e prontos para pilharem os azarados que se aventurassem por aquelas águas selvagens?

Diante desse pensamento fugaz, Gadling tenta se lembrar se já houve nessa sua vida longeva uma aventura similar da qual vivia, sem ele mesmo se lembrar de como começou essa viagem e aonde pretendia chegar; algo que poderia incomodar a um desavisado de seu próprio destino.

Menos a Hob Gadling, aparentemente.

Segurando-se nas cordas das grandes velas içadas do navio, o homem sobe e se equilibra com agilidade quase felina sobre a amurada da proa, olhando – como se estivesse hipnotizado – para o horizonte azul à frente, em busca de algo que talvez ele mesmo não saiba o que é.

Não ainda.

━━ Olha isso... Olha essa vista, é de perder o fôlego! Como pude passar tanto tempo longe daqui? — aponta em voz alta o sentimento acachapante que lhe enche o peito e, por um momento, tudo parece perfeito...

Até um som de trovão ecoar naquele céu azul como uma chapa de metal, incômoda e destoante do dia ensolarado que se apresenta.

Gadling procura a origem do barulho, naturalmente, ainda pendurado na amurada, e descobre, com aflição, uma enorme tempestade a seu encalço.

Inesperada como uma visita malquista.

Perseguidora como um assíduo predador.

Que pela presença faz seu estômago gelar.

Gadling tenta alertar, aos berros, os homens da nau, mas sua voz não sai.

Não tanto pela furiosa tempestade em si – que parece realmente caçá-lo no meio do oceano –, mas pelo sentimento de culpa, diante daquilo que parece uma lembrança antiga de um erro imperdoável, emergir à superfície como uma criatura monstruosa saída das águas turvas do desconhecido para devorar os desafortunados, ao testemunhar homens – que Gadling acreditava até então fazerem parte da tripulação – acorrentados uns aos outros e saírem de seu convés para pularem direto para o alto mar.

E por mais incoerente que possa parecer, no fundo, Gadling sabe por que eles fazem essa escolha, pois a morte é mais aprazível do que viver uma vida desumana que os homens acorrentados certamente teriam como futuro se chegassem em terra firme.

E Gadling, pelos mais de 600 anos vividos, tem certeza que faria o mesmo se estivesse no lugar deles, porque agora sabe as consequências que acarretaram na escravidão. E lamenta por ter feito parte disso...

É quando tudo deixa de ser uma espécie de sonho e se torna um terrível pesadelo.

Ventos fortes sopram de todos os lados, um paredão de chuva torrencial dificulta a vida de qualquer um exposto e desprotegido. E uma grande onda se quebra contra o casco com violência, causando fortes movimentos nauseantes na embarcação que quase derrubam Gadling para fora do navio.

É uma mão que detém a sua queda, que o segura com firmeza pelo braço, o mantendo quase pendurado na amurada.

━━ Wow... Essa foi por pouco... — sussurra ele, apertando com força um pedaço da própria camisa de flanela suja, por debaixo de um sobretudo imundo de capitão, por conta do nervosismo diante da possível queda, enquanto olha para o mar revolto.

The Sandman - Olhando Para Dentro [✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora