Lugar desconhecido

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O que está havendo Camila?
Não sei...
Tudo ao nosso redor mudou, era como se eu estivesse em outro lugar. Eu estava no jardim, mas não era exatamente o jardim. O cheiro de alecrim se transformou em cheiro de fumaça forte.

O céu estava em chamas, era meia noite. As labaredas tentava alcançar o céu, soltando rolos enormes de fumaça, engolindo tudo pelo caminho. Até a lua. O chão tinha virado um pântano. Era um chão de cinzas queimadas pela chuva que precederam o fogo. Se ao menos tivesse chovido hoje... Harley se engasgava com a fumaça que lhe queimava a garganta. Que dificultava a respiração. Havia lama grudada na barra de suas saias, fazendo tropeçar cada vez que dava alguns passos em meio às volumosas dobras de tecido.

Era o fim do mundo. Do seu mundo.
E ela podia ouvir gritos e mais gritos, misturados aos inúmeros tiros e ao enorme rugido do fogo. Podia ouvir os soldados gritando ordens de assassinato.
- Queimem aquelas casas. Deixem que os rebeldes sintam o peso da derrota, queimem tudo!
E, uma a uma, os soldados da união tinham tocado fogo na casa grande das fazendas, com os próprios lençóis e cortinas embebidos em querosene. Uma a uma, Harley viu as casas dos seus vizinhos, dos amigos e familiares, se renderem as grandes chamas. E, na pior das circunstâncias, muitos desses amigos e familiares acabaram se rendendo também. Comidos vivos pelas chamas nas mesmas casas em que nasceram.
Era por isso que ela corria, na grande fumaça, em direção ao fogo, bem na boca da fera. Tinha que chegar a Green antes dos soldados. E não tinha muito tempo. Os soldados eram metódicos, trabalhando ao longo da Santee queimando as casas uma a uma. Já tinham queimado a casa dos Dove's, a dos Stohls seria a próxima. Depois Green. O general Austin e seu exército tinham começado a campanha de incêndios. Centenas de quilômetros antes de chegar a Gatlin.

Tinham queimado completamente tudo o que viam pela frente, e continuavam a marchar pelo leste, quando chegaram aos arredores de Gatlin. A bandeira da confederação ainda tremulava a energia renovada de que precisavam. Foi o cheiro que disse a ela que era tarde de mais. Alecrim. O cheiro forte de alecrim queimado.
A mãe de Harley amava como ninguém os seus alecrins, então quando seu pai visitava uma fazenda na Geórgia, tinha trazido duas mudas de flores do campo e outras duas de alecrim.

Todos diziam que não iria crescer, que as noites frias iria matá-los. Mas a mãe de Harley não prestou atenção, ela os plantou e cuidou delas sozinha, nas noites frias de infernos cobria os mesmos. E não demorou muito para suas flores e seus alecrins crescerem. Cresceram tão bem que ao longo do tempo o pai de Harley trouxe para ela 28 árvores de limoeiros. Algumas outras damas da pequena cidade pediam aos seus maridos flores, alecrins e limoeiros para plantarem. E alguns deles até que conseguiam um ou dois. Mas nenhuma delas conseguiram descobrir como manterem suas plantações vivas. As plantações só pareciam florecer na fazenda Green, sob os cuidados da mãe de Harley. Nada tinha conseguido matar essas plantações até hoje.

- O que acabou de acontecer?
Senti Lauren afastar sua mão da minha e abri os olhos. Ela estava tremendo. Olhei para baixo e abri minha mão para ver o objeto que eu tinha inadvertidamente tirado debaixo da pedra.

- Acho que teve algum coisa a ver com isso aqui. - minha mão encontra um velho camafeu amassado, preto e oval, com o rosto de uma mulher entalhado em marfim e madrepérola. O trabalho na face do objeto era intricado e cheio de detalhes. Na parte de dentro, reparei que havia Um pequeno calombo. - Olhe. Acho que ele abre.

Apertei o dispositivo e a frente do camafeu abriu, revelando uma pequena inscrição.

- Só diz Green. É uma data.
Lauren se sentou.
- O que é Green?
- Deve ser aonde estamos. Aqui não é a fazenda Jauregui, aqui é Green a fazenda ao lado.  - Assenti, era quase horrível de mais para falar sobre.
- aqui só pode ser Green, ou o que sobrou dela.
- Me deixa ver o medalhão.
Entreguei a ela com cuidado. Prévia algo que tinha sobrevivido a muita coisa, talvez mesmo o incêndio da visão. Ela o virou nas mãos.

- 27 de junho de 1865. - Ela deixou o medalhão cair e ficou branca, mais branca do que o normal.
- O que foi?
Lauren olhou para a grama.
- Camila, 27 de junho é o meu aniversário.
- É uma coincidência, essas coisas acontecem. Um presente de aniversário antecipado.
- Nada na minha vida é uma coincidência.
Peguei o medalhão e o virei, na parte de trás havia duas inicias entalhadas.

- CEC & HJM. Esse medalhão deve ter sido de um deles.
-Que? Meu aniversário e suas iniciais. Você não acha que é um pouco mais do que uma coincidência?
Talvez Lauren estivesse certa...
- Deveríamos tentar de novo para que possamos descobrir.

- Não sei. Pode ser perigoso. Parecia mesmo que estávamos lá. Meus olhos ainda ardem por conta da fumaça.
Ela estava certa. Não tínhamos saído do jardim, mas parecerá que estávamos bem no meio dos incêndios. Eu podia sentir a fumaça nos meus pulmões, mas não importava. Eu precisava saber.

Entendi o medalhão é minha mão.
- Vamos lá Lauren, você não é corajosa ?
Era um desafio. Ela revirou os olhos. Mas esticou a mão mesmo assim. Seus dedos encostaram de leve nos meus, e senti o calor de suas mãos se espalhando nas minhas. Um arrepio elétrico. Não sei descrever de uma maneira.
Fechei meus olhos e esperei, nada. Abri meus olhos.

-Talvez tenhamos imaginado. Talvez esteja sem pilha não sei.
Lauren olhou para mim como se eu fosse doida.
-Talvez. Aí dê para dizer a uma coisa como essa o que fazer ou quando fazer. - Lauren se levantou e se limpou, - Tenho que ir.
Ela fez uma pausa e olhou para baixo, para mim.
-Sabe Camila, você não é o que eu esperava.
Ela me deu as costas e começou a andar até a extremidade do jardim.
- Espera! - Chamei, mas Lauren continuou andando. Tentei alcançá-lamas tropecei nas raizes.

- Não.
- Não o que ?
Ela não olhava para mim.
- Me deixe em paz enquanto tudo ainda está bem.
- Não estou entendendo o que você está falando. De verdade.
- Esqueça.
- Acha que é a única pessoa complicada que tem no mundo ?
- Não. Mas... é meio que a minha especialidade.
Ela se virou novamente para ir, hesitei e coloquei a mão sobre seu ombro. Estava quente por conta do sol que desaparecia.
Ficamos assim por alguns minutos até que finalmente ela desceu e decidiu se virar para mim.

- Olha. Tem alguma coisa acontecendo aqui. Os sonhos, a música, o cheiro e agora o medalhão. É como se devêssemos ser amigas.
- Você acabou de dizer cheiro? - Ela parecia horrorizada. - Na mesma frase que amigas?
- Tecnicamente, acho que era uma outra frase.

Lauren olhou para minha mão em seu ombro e eu automaticamente a tirei, mas eu não conseguia deixar o acontecimento de minutos atrás para lá. Olhei bem nos olhos dela, olhei mesmo, talvez pela primeira vez. O abismo verde parecia ir a um lugar tão distante que eu jamais conseguiria alcançar, mesmo em uma vida inteira.

É tarde demais Lauren, agora você é minha amiga.
Não posso ser Camila
Estamos nisso juntas.
Por favor Camila, você tem que confiar em mim. Não estamos.

Lauren quebrou a conexão de nossos olhos e apoio sua cabeça em uma árvore. Parecia infeliz.

- Eu sei que você não é como eles. Mas tem coisas sobre mim que você seria incapaz de entender. Você não pode entender.  - Não sei porque há essa ligação entre nós duas. Não sei por que temos os mesmos sonhos. Sei tanto quanto você Camila.

- Mas eu quero saber o que está havendo...

- Faço 16 anos em nove meses. - Ela ergueu a mão, pintada com um número, como sempre.
O aniversário dela. O número escrito em sua mão que mudava todo dia, Lauren estava fazendo contagem regressiva.

- Você não sabe o que isso quer dizer, Camila. Não sabe de nada. Posso nem estar aqui depois disso.

- Você está aqui agora.
Ela olhou para além de mim, na direção de sua casa. Quando finalmente falou, não estava olhando para mim.

-Gosta daquele poeta, Bukowski?
-Gosto - Respondi, totalmente confusa.
- Nem tente.
-Não compreendo.
- É o que está escrito na lápide de Bukowski.
Ela desapareceu pelo muro de pedra e se foi. Nove meses. Eu não tinha ideia sobre o que Lauren estava falando, mas reconheci o sentimento nas minhas entranhas.
Pânico.
Quando consegui cruzar a passagem no muro, ela tinha sumido como de jamais tivesse estado lá comigo. Deixando só uma brisa no ar de alecrim. O engraçado era que, quanto mais ela corria, mais eu ficava determinada a segui-la e conhecê-la melhor.

Nem tente.

Eu estava bem certa de que minha lápide teria algo diferente escrito.

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