aos nove anos, numa tarde depois da escola, brincando com alguns colegas, felix percebeu seu melhor amigo. diferente de si, ele tinha a pele preta, retinta, e era alguns centímetros mais alto, além de ter ombros largos, que rendiam-lhe muitos elogios durante as aulas de natação.
de todas as coisas na aparência desse seu amigo, mike, a sua preferida eram as longas tranças que a irmã mais velha fazia nele. felix gostava de apertar entre os dedos o cabelo fofinho e sonhava com o dia que seu pai deixasse que seu cabelo crescesse também. ele não necessariamente desejava ter aquelas tranças pretas e azuis, mas sempre quis saber como ficaria com o cabelo, pelo menos, na altura dos ombros. isso só viria a acontecer quando felix tivesse dezessete anos, depois de uma discussão acalorada com seu pai, porque o filho se recusara a cortar o cabelo como sempre cortou – curto, quase rente ao couro cabeludo.
as outras crianças costumavam ser um pouco maldosas com felix. o motivo não lhe era muito claro, mas diziam a ele com alguma frequência que o modo como ele falava e o jeito como se movia era "esquisitos". uma vez, uma menina lhe disse que os pais dela o chamariam de "bichinha" se o vissem "andar daquele jeito".
mike não era como as outras crianças. ele não dizia coisas ruins e nem o provocava pelo jeito como se expressava ou por sentir a necessidade de abraçar seu melhor amigo de vez em quando. mike sempre retribuía seu abraço.
de todas as coisas no jeito de ser de mike, a preferida de felix era como ele sempre encontrava com facilidade uma perspectiva positiva até mesmo nos piores momentos. mike era parceiro, quase um cúmplice de felix. juntos, eles passavam a tarde inteira sonhando acordados com mundos fantásticos e com brincadeiras elaboradas. não havia limite para a imaginação dos dois e, ao passo que felix habitava o universo de mike, a presença de mike lhe inspirava tanta segurança que felix sentia-se confortável o suficiente para convidá-lo para o seu próprio universo também.
naquele dia em especial, no entanto, felix viu algo diferente no sorriso de mike. havia um brilho, um jeito meio doce com o qual seus olhos se fechavam quando ele ria. havia... uma forma particular em que a luz do sol refletia na sua pele. felix não sabia exatamente o que era aquilo dentro de si, porém tão logo compreendeu que deveria sentir medo daquelas impressões.
poucos meses mais tarde, mike foi embora junto com a sua família para morar em outro estado da austrália. apesar da dor da saudade, felix sentia-se um pouco aliviado, porque finalmente poderia viver sem aquele sentimento terrível de estar gostando de alguém que não deveria.
x
a noite sempre pareceu um momento – um lugar – em que o silêncio ecoa com maior amplitude. qualquer som que quebre a quietude rasga os ouvidos. ao mesmo tempo, esse silêncio tão vasto faz felix se sentir imensamente pequeno e solitário. ele também se sentia assim quando tinha a oportunidade de visitar lugares mais afastados da civilização e mais próximos da natureza. dessa forma, é possível dizer que, para felix, o silêncio é um elemento natural, com capacidade para trazê-lo mais perto das suas origens – de onde vem toda a humanidade.
felix sempre quis saber como era estar com alguém confortável à noite, dividindo a quietude.
naquela noite, ao sair do dormitório para uma de suas caminhadas rotineiras, ele contemplou a possibilidade de convidar hyunjin para acompanhá-lo. eles não eram assim tão próximos, mas hyunjin– ele havia ido ver felix nadar. talvez felix pudesse e devesse se abrir e permitir que alguém tão gentil quanto hyunjin entrasse em sua vida. honestamente, felix não achava que pudesse oferecer muito em troca, porém... bem... dizem por aí que relações genuínas se baseiam em coisas simples, então...
felix meteu as mãos nos bolsos do casaco e continuou caminhando em silêncio, sem rumo. às vezes ele gostava de fazer isso ouvindo música – ainda mais sob o silêncio noturno, tão confortável ao ponto de felix colocar sua música para tocar em volume baixo e ainda assim conseguir ouvir todas as nuances e os pequenos detalhes da faixa instrumental, – contudo, naquela noite, felix tinha dois pensamentos recorrentes que teimavam em tirar a sua paz: a primeira ainda era a missão de se questionar a respeito da sua identidade literária; e a segunda...
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Eu tenho feridas
Romanceum tanto solitário e desajustado, felix inicia sua vida adulta na faculdade, esperando que finalmente pudesse viver em paz, longe dos velhos monstros de sempre. acontece que, por alguma razão, o veterano christopher bang está em todos os lugares. [c...