Capítulo Único

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Erwin olhou para a água, e ela olhou para ele.

As ondulações azuladas tocaram os nós de seus dedos, e quando a superfície aquosa dançou sob eles, sorriu. O som das gaivotas ambientou sua improvisada sessão de terapia, e tampouco importa-se se suas vestes reais sujaram-se na terra lamacenta.

A água parecia amiga, possivelmente o único contato caloroso que Erwin teve desde Napoleão expulsá-lo de Portugal. Além da maleta velha com seu kit de caligrafia, ele deixou seu reino, sua terra e seu povo. Valei-o, Nossa Senhora Aparecida, pois Erwin ainda dorme com pesar ante às lembranças turvas do abandono de suas raízes.

O Brasil é majestoso e possuía sua beleza entrelaçada à mata e os cânticos de Salvador, entretanto ainda não havia nenhum desenvolvimento.

Quando seu pai foi claro em construir a segunda terra portuguesa em solo sul-americano, Erwin apenas concordou obedientemente, como sempre.

As aulas para se tornar o próximo rei adicionadas às estratégias semanais para evitar o exército francês e possíveis investidas inglesas tornaram-se exaustivas rapidamente, deixando o príncipe à mercê do esgotamento.

Sua amiga água, no entanto, aparentou entender sua dor. Ela abraça seus dedos como quem abraça um filho, e Erwin a aceita como uma mãe.

Com a respiração regulada pelos ruídos brasileiros, o príncipe puxa todo ar no intuito de que a tranquilidade o consumisse, que Napoleão não encontraria sua família outra vez, e que a Inglaterra não pedisse muito em troca da proteção da coroa portuguesa.

Os pensamentos voaram-lhe à mente, contudo, a única coisa que Erwin recebeu da água foi um olhar.

Instintivamente, o medo consumiu e suas pernas moveram-se sozinhas, afastando-se do rio como quem visse um demônio, tudo que sua igreja temia e repudiava.

Olhos. A água tem olhos.

Erwin quis recordar aos pulmões como era respirar normalmente, a boca entreaberta expelindo o gás carbônico com eloquência. Após alguns segundos, junta forças para esgueirar-se sob o rio. Um passo, depois o outro, o coração bate rápido e há um olhar cauteloso.

Quando Erwin encara sua amiga água, não há nada senão as mesmas ondulações de sempre.

Ele ri.

Está ficando louco, com total certeza. Não há porque a água ter olhos.

Como és bobo, ele pensa, e girando os calcanhares em rumo ao castelo e a próxima estratégia com o time de conselheiros, se despede da água. Quando Erwin está longe de vista, não só os olhos, mas a metade do torso do que o príncipe viu submerge do rio.

A coisa sabe que Erwin vai voltar no dia seguinte.

Correndo para o gramado grudento de lama, o príncipe finca a terra com suas unhas curtas e suas lágrimas se juntam ao rio. Sua respiração permanece desregulada, a laringe e faringe não se difundem mais. O buraco em seu peito aumenta ao notar o seu reflexo.

Ele sabe que é irreal, mas gostaria que sua amiga água olhasse para ele, mesmo que em sua cabeça desvairada. Quer dar atenção aos delírios pré-existentes e saber que não está sozinho, porque seu peito clama por isso. Precisa que o rio dedilhe suas inseguranças e o diga que tem um lar.

Desesperadamente.

Com o último soluço solto, seus punhos são envolvidos por outros. A mesma sensação de alerta o dominou instantaneamente, analisando as mãos meio azuladas e geladas que envolveram as suas.

Seus olhos lápis-lazúli encontraram os de chumbo. O corpo de Erwin se encontrava estático, movido somente pela fácil tarefa de admirar a figura que nasceu das margens daquele rio esquecido por Deus.

O cabelo da criatura não estava molhado, seu tórax era precisamente envolvido por escamadas tão azuis quanto os olhos de Erwin.

Belo. Foi a primeira palavra que passou por sua mente delirante e entorpecida diante aquela presença marinha.

O rosto e a pele da criatura o distraíram enquanto acariciava a mão do príncipe. Erwin, no que lhe concerne, mal notou as unhas compridas que o desconhecido tinha.

— Por quanto tempo choras tão copiosamente, ser andante? — perguntou calmamente. — Minhas águas queixam-se por tua sujeira, pois elas são doces, e tuas lágrimas são tão salgadas quanto a dor que carregas.

Erwin pisca duas vezes antes de responder, e outra lágrima cai na superfície.

— Perdoai-me — ele pede. — Escutaste os meus prantos e clamores?

A criatura assentiu.

— O lar aquoso ouvistes tuas preces. Eu as ouvi. Tu deves afastar-te deste povo do qual andas. Não são eles que causam o teu choro?

O príncipe engoliu em seco, acalmado.

— Como te chamas?

— Cuidaste do teu âmago, andante? Podes quebrar o próprio espírito e alma como alguém afugenta as águas da superfície. No entanto, se retornar ao teu martírio, não haverá rancor. Estareis aqui para ouvir-lhe chorar e segurar-te a mão.

Quando a resposta de Erwin estava pronta para escapar da língua, ouviu a voz de um dos generais da coroa portuguesa e se virou instantaneamente. Ao retornar à figura desconhecida, já havia sumido.

Alguns dias depois, o príncipe deslocou-se junto à família real ao Rio de Janeiro. Seu tio e a comitiva real administrava os portos brasileiros às nações amigas, em seguida a grande reforma carioca.

E em nenhum momento, Erwin deixou de pensar nele. Queria ouvir sua voz melodiosa, se perder no toque afável de suas mãos e, por mais do que tudo, olhar em seus olhos uma segunda vez.

Rezou a todos os santos, escreveu no diário, promoveu expedições em todo litoral, mas de nada adiantou. O príncipe foi revê-lo apenas dali dois anos, após a reunião dos Tratados de Navegação e de Aliança e de Amizade.

Levi estava na beira de um rio, e olhava para ele como a água uma vez já o contemplou.

Então, Erwin soube.

Era sua amiga água.

Amiga Água (Eruri)Onde histórias criam vida. Descubra agora