A nona carta

335 29 23
                                    



Diluc ainda se lembra claramente do som da chuva naquele entardecer.

Pingos desfragmentando a terra escura como em câmera lenta, umedecendo seu cabelo tanto quanto as folhas; encharcando as roupas de Kaeya, escorrendo pelo punho dele para o cabo liso de uma espada. Quando ele ergue a cabeça para encará-lo, Diluc — pela primeira vez, em anos recheados de convivência — não consegue desvendar o que é transmitido no brilho implacável daqueles olhos.

Ele acha que, concentrando-se o suficiente, ainda pode escutar o som da respiração alta de Kaeya sobrepondo-se aos trovões. Aguda, desesperada, afiada como uma faca e cansada. Machuca Diluc tanto quanto as palavras que ele acabou de proferir, um punhal invisível em seu coração e raiva exacerbada queimando na ponta da língua.

Traição é algo que ele nunca esperava, não dele, não naquele momento e em nenhum outro. Kaeya é sua alma gêmea, Kaeya é o detentor de seu amor, Kaeya é tudo para ele. Mas, agora, Kaeya é quem está tirando seu chão, abalando tudo o que Diluc conhece enquanto enche seu peito de fúria.

Não mais da satisfação suave e quente que serpenteia por seu estômago toda vez que Kaeya sorri, mas um ímpeto assassino que cresce e cresce, consome tudo com fome pura, absorve o autocontrole que Diluc cuidadosamente semeou em sua personalidade desde que era um moleque.

E dói, simplesmente. É insuportável. O sentimento de ser traído é amargo, tão forte que confunde a cabeça de Diluc, cega seus olhos. Permeia-se com a tristeza, mas esta facilmente é engolida pelo eco incessante da voz de Kaeya repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo e repetindo.

Quebra. Rui. Estoura e pulsa. De novo e de novo.

"Meu verdadeiro pai foi chamado de 'rei' durante a guerra em Khaenri'ah. O sangue de nosso povo foi derramado aos pés dos Arcontes e minha mãe foi assassinada diante dos meus olhos. No dia em que te conheci, eu já carregava um legado sobre meus ombros. Uma esperança para eles."

Aquilo não para. Não é um sonho, não é um pesadelo. Diluc não pode acordar, não pode fugir por mais que queira. O velório de seu pai foi naquela mesma manhã, mas nem quando o peso do caixão atingiu as pedras metros abaixo do solo Diluc se sentiu tão desolado, tão sozinho e irracional como agora.

A conclusão da confissão alheia é inevitável e cruel demais. Kaeya traiu sua confiança e, um dia, Kaeya irá trair a todos que ele conhece. Mondstadt, Crepus, os amigos deles, Diluc... Diluc. Kaeya não é como Diluc, nunca foi e qualquer comparação contrária era mera enganação barata. Kaeya é de Khaenhri'ah, Diluc é de Mondstadt, nascido em Teyvat. São forças opostas, inimigos marcados por uma guerra de 500 anos atrás, remanescente na história até os dias atuais.

Kaeya representa a semente de uma ameaça, uma real e das grandes. Kaeya simplesmente não deveria existir.

Ele não pode perdoar Kaeya. Ele não quer perdoá-lo. Ele- Ele quer machucá-lo, magoá-lo, traí-lo também. Ele não quer- Ele quer que Kaeya sinta o que está sentindo, mil vezes pior e mais duramente. Não. Ele quer reduzir o coração dele às cinzas, um estrago tão grande quanto o que Kaeya fez com o coração dele.

Ele odeia Kaeya Alberich. Ele o odeia por fazer isso consigo, por arruinar a esfera frágil feita de amor e confiança que Diluc demorou tanto tempo para condensar.

Ele odeia a si mesmo por ter cobiçado a atenção de um enganador, por ter perdido noites em claro, nervoso com a perspectiva de deitá-lo contra seus lençóis, amá-lo mais do que um melhor amigo de infância ou um irmão jurado normalmente faria.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 28 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Cartas para Diluc - LucKaeOnde histórias criam vida. Descubra agora