5 de Alfradia de 182 a.U
A humanidade está perdida.Pois é, meu tão estimado Æts, aposto que deve estar exaurido o suficiente de mim, mas persistirei em repetir, as pessoas deste continente são vis, gananciosas, preconceituosas e esdrúxulas. Repito pois ontem me ocorreu mais um pesadelo com você, com o que lhe fizeram. Minha espinha se arrepia. Sei que você, acima de qualquer pessoa é quem deveria estar revoltado, mas você não está. E isso me deixa ainda mais irritado.
A propósito, cruzarei amanhã a fronteira para Aseel. Sei que independente do que eu diga você provavelmente continuará achando essa ideia estúpida... você sempre achou. Por hora peço que confie em seu amigo. Sairei pela quarta hora da madrugada, quando os guardas da fronteira fizerem a troca de posto. O que me assusta é o arame farpado acima da muralha. Terei sorte se conseguir passar sem me cortar... Sorte... Bem, pensando por este lado, então não preciso me preocupar.
Talvez esta seja a última vez que converso contigo por cartas. Vai saber o que me pode acontecer... Quem sabe, não ser devorado pelas criaturas de pedra gigante ou pelos espectros aterradores que vagam pela noite e que dizem existir por lá?
“Nossa, que dramático!” Aposto que deve estar pensando. Tá bem, e daí que eu seja? Não é a prudência que nos guarda a vida? – Embora ache eu que não seria de todo ruim encontrar com este destino.
Enfim, minhas malas já estão prontas. Não estou levando muita coisa, assim não fico preso a materialismo algum. Por favor, diga a Marie que ela continua em meus pensamentos. Sei que ela deve estar em júbilo por não precisar mais ver meu rosto, mas isso não muda o que sinto por ela. Conte a ela também sobre essa minha pequena aventura. Não quero que ela fique surpresa se por acaso chegarmos a nos encontrar no futuro.
Sendo bem sincero Æts, farei de tudo para não precisar lhe encontrar. Se tudo der certo e meu escolhido aparecer, então terei cumprido minha missão.
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6 de Alfradia
Glória à Rainha, meu tão estimado Æts!
Adentrei em Aseel.
O que encontrei, a princípio, foi uma pradaria de perder de vista salpicada com dentes-de-leão e margaridas. Segui o caminho. Não parecia um ambiente mais singular que qualquer outro campo florido dos Condados Unidos. Senti cheiro de mato, orvalho e um sol fraco – parece que pelo menos o outono conseguiu chegar aqui.
Andei por umas três horas até me deparar com dezenas de grandes pedras redondas cobertas por musgo.
— Onde pensa que vai?! — escutei uma voz grotesca, grave, vindo das pedras. Virei o pescoço e as vi movimentando-se, elas se levantaram até formarem uma silhueta humanoide. Santo Deus! – vulgo eu, né? — O que raios era aquilo meu tão estimado Æts?! Uma pedra que fala? Em todas estas centenas de anos nunca pensei que algum dia encontraria tal assombro! — Não pode cruzar aí. — balbuciou a pedra em tom autoritário.
Depois de alguns minutos de o encarar espantado, retirei minha cartola em cumprimento, e, por vê-la, algum efeito hipnótico deve tê-lo acometido, já que sua expressão enfurecida desvaneceu-se. É compreensível, essa cartola chega a ser tão colorida que até eu às vezes me hipnotizo. – Só um adendo, sei o que está pensando Æts e não! Não! Não vou deixar o meu estilo e você sabe disso! O quê? Seria eu o anormal por querer usar roupas coloridas ou esse mundo por se vestir de forma tão mesquinha e monocromática? Deixe-me com meu arco-íris, tudo é tão tedioso e chato nesse continente... – Enfim, depois que parei de estremecer, lhe respondi, mesmo gaguejando:
– Perdão, sua graça, preciso cruzar essa região. Há quem diga que ao norte, onde o horizonte se esconde e o sol não ousa bater, as margens do Rio Pororoca, vive um povo lendário cujo as lendas sobre eles são tão insanamente lendárias que até os mais lendários dos povos lendários ficariam estupefatos! Lá, hei de encontrar o escolhido para ser abençoado pelos meus poderes.
— Tudo o que lhe aguarda a frente destes pampas — disse ele — é escuridão e morte. Somos os guardiões da floresta de Aseel. Não deixaremos entregar sua vida de tal maneira.
— Mas eu não sou uma pessoa qualquer.
— De nada adianta! — ele me respondeu rude — Força, poder, inteligência, são habilidades vãs se comparados aos pesadelos que habitam por estas relvas.
Levantei uma sobrancelha em desafio, ele percebeu e ficou irritado.
— E a sorte?
— O quê?!
— Mas e a sorte? Se por acaso eu tiver sorte poderei cruzar por estes becos?
— Que tolo conta com a sorte para sobreviver?
— Eu. Afinal, ela sou eu. – Ele não entendeu, quase ri de sua expressão confusa. Então complementei: – Sou o Deus da Sorte. Aquele para quem as pessoas jogam uma moeda no poço e fazem um pedido. Aquele que abençoa os trevos de quatro-folhas e amaldiçoa os de três. Aquele que odeia sextas-feiras e adora deitar sobre as estrelas esperando uma estrela cadente. O que é odiado e amado pelas pessoas ao mesmo tempo.
Ele ficou embasbacado.
Bem, se ele fosse mais esperto também, não seria tão difícil perceber quem eu era. Lembra Æts? Até você, meio tonto do jeito que é, percebeu minha identidade quando viu a tatuagem do trevo de quatro-folhas em volta do meu olho... A criatura ficou em silêncio por alguns segundos, depois tornou-se a dizer:
— Perdão pela minha ousadia. Neste caso, o senhor tem todo o direito de passar. Acredito que no momento, seja o único ser capaz de cruzar estas bandas. — escutei um suspiro, por acaso aquela pedra respirava?
— Não precisa se desculpar.
— A propósito senhor, devo-lhe alertar sobre o que lhe aguarda, as regras que precisa seguir ao entrar na floresta e os monstros que deve ficar longe.
— Por favor.
Então ele começou a me contar, Æts. Eram duas regras somente, para minha surpresa:
1. Não cante junto com as árvores, por mais tentador que seja.
2. Jamais saia pela floresta a noite! Eles estarão lá.
Neste momento, quase dei de costas e voltei para o continente. Mas acho que nem precisava dizer que não fiz isso. Me lembrei de você, Æts, segundos depois, lembrei daqueles porcos miseráveis e do que lhe fizeram. Não posso voltar a encontrá-lo sendo um covarde. Voltar não é uma alternativa.
Mas ainda não irei lá, não criei a coragem suficiente. Por hora irei acampar aqui, junto com as pedras falantes e amanhã, assim que o sol despontar, talvez eu dê o primeiro passo até o inferno...
Talvez eu o veja em breve Æts, talvez não. De qualquer forma, o destino está tão incerto que tenho medo de palpitar.
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Uma Sorte Para Aseel
Fantasia🥇#1° Lugar no Concurso23 "Carta de Um Mundo Novo" do perfil @WattpadFantasiaLP -----||----- Um lugar onde as pedras falam e as árvores cantam, sim, todos em Baldória conhecem as lendas místicas que envolvem a região de Aseel. Ainda assim, em meio a...