O som do silêncio, o tão almejado som do silêncio. Muitos o queriam escutar ao menos uma vez na vida, nem que fosse por um segundo sequer, mas na realidade a única coisa que se podia encontrar em Bluefield era o barulho. Muitas vezes o barulho se fazia de silêncio, isso quando se apagavam as luzes e todos fingiam não estar com as mentes barulhentas. Mas isso não se é de todo ruim, pior seria se fosse silêncio disfarçado de barulho. Aí sim seria vergonhoso. O único lugar onde Matthew pode encontrar um vislumbre do que poderia ser o som do silêncio, foi em meio a sua querida floresta. Naquela manhã o o suposto silêncio estava mais barulhento, exageradamente barulhento. As moedas de seu pagamento se batiam em seus bolsos, interrompendo a linha de pensamentos do ladrão diversas vezes. Estava começando a se sentir estressado com o barulho constante invadindo sua ideia de silêncio.
Por mais que o clima de verão ainda se fizesse presente, conforme caminhava sobre as folhas secas em meio as árvores o vento sereno batia em seus braços nús. Sua alva pele clamava por uma espécie de proteção conforme seus pelos ruivos iam se arrepiando, fazendo com que as reclamações pelo frio saíssem atoa de sua boca. Logo seus girassóis estariam mortos, secos com o frio do inverno. Talvez entrar na procura de outro lugar para se esconder fosse a melhor opção. Sua alma se encontrava em um momento de raridade: nua de sua constante atenção a tudo aquilo que se situava ao seu redor. Pensando talvez em uma solução para seu barulho, talvez desejando que as moedas parassem de se bater e causar ainda mais barulho. Estava desatento, perdido e com a guarda baixa. Quando de repente, ao longe seus ouvidos se recuperaram, escutando passos. Extremante barulhentos passos. Era como ouvir alguém com a energia de um guepardo e a leveza de um elefante. O poeta se pôs em posição de defesa, estreitando as sobrancelhas e se escondendo atrás de uma grande árvore.
Os passos escandalosos se aproximavam cada vez mais, parecendo inseguros e sem o menor senso de localização. Geografia com toda certeza não era a especialidade do próximo estranho. Matthew lentamente moveu sua mão até sua adaga, posicionada no lado direito de seu quadril. Era um rapaz de uma peculiaridade um tanto quanto estranha para os moradores de Bluefield:possuía a mão esquerda como dominante. Um canhoto. Ele puxou a adaga de sua bainha, esperando o exato momento em que a estranha pessoa estivesse posicionada atrás da árvore em que se escondia. Nessa hora, contando os perfeitos segundos, ele se vira. Apontava a lâmina no pescoço alheio, ainda mantendo certa dificuldade por perceber que se tratava de um rapaz mais alto. Moreno de cabelos e olhos, pele branca e um semblante desesperado pela própria vida em sua face. "Quem é você? Se não responder já sabe que sua vida está em risco."
O alto desconhecido ainda se mantinha imóvel, sem raciocínio algum. A sua situação atual não favorecia o raciocínio lógico, um estranho apontando a possível morte em seu pescoço. O rapaz, não muito mais velho que Matthew, talvez até de mesma idade, conseguiu de alguma forma fixar seu olhar nas esmeraldas brilhantes dos olhos de Matthew, o encarando com o mais profundo medo da realidade. Sem pensar se sua descoberta seria boa ou ruim, ele então se revelou verdadeiramente. "T-Thomas Bourbon, esse meu nome." Ele engoliu e se embolou com as palavras, Matthew ainda o encarando fixamente. Nesse momento, com as palavras saídas da boca ainda não descoberta, o jovem ladrão fez a maior cara de espanto possível, se afastando imediatamente do homem a sua frente. Se antes já estava preparado, depois das palavras era certo que Matthew não estaria com a guarda baixa.
"Você- Você é a porra do príncipe perdido!" Ao mesmo momento que sentia pura e genuína surpresa, Matthew também se irritou com a presença real a sua frente, pensando e repensando as consequências que ele e sua família iriam ter por culpa de suas ações anteriores. Ameaçar o próximo rei com uma adaga em seu pescoço com toda certeza não o faria perder apenas as mãos. "Como diabos você está aqui, perdido nesse fim de mundo?!"
O medo da morte é a única coisa comum em todos os indivíduos.
"E-eu... eu só..." Nessa pergunta, tão simples pergunta, Thomás tremeu mais do que no momento em que sua vida estava em risco. Suas mãos suando frio, seus pés mal o mantendo em pé. Com a boca aberta de forma curta, o príncipe reuniu suas forças para que conseguisse algo dizer. "Eu fugi... eu não quero... não quero ser o rei."
Nessa hora, nessa exata hora, a reação de choque era a única possível de se identificar na feição de Matthew. Como assim, alguém que não almeja o privilegio de ser o rei? Eram raras as crianças nascidas nesse berço de ouro, e alguém com o maior dos privilégios virava sua cara para o lado contrário. Para os nobres, um desrespeito. Para os pobres, uma ação da mais pura idiotice. Em um misto do que antes era medo e agora se transformava em raiva, Matthew agarrou o o pescoço de Thomas com ambas as mãos, o deixando ainda mais perplexo e desentendido do que estava antes. "Você é maluco?! 80% da população do SEU REINO MATARIA PRA ESTAR NA PORRA DO SEU LUGAR, e você faz a grandíssima idiotice de fugir pra não se tornar a merda do REI?" Percebendo sua própria exaltação (e que Thomas ja se encontrava roxo pelo aperto) Matthew o soltou, se afastando com a mão na testa, caminhando de um lado a outro de forma eufórica. "Desculpe, acabei me exaltando um pouco. Mas porra."
"N-não tudo bem, tudo bem." O príncipe ainda recuperava o fôlego, tossindo um pouco e encarando Matthew como se esperasse que o rapaz mais baixo pudesse o matar a qualquer momento. Com esse surto de Matthew, vossa alteza percebeu algo: como o rapaz ruivo andava por aí com tanta confiança? Era algo que apenas alguém que conhecesse a região poderia fazer. Era algo que Thomas poderia usar ao seu favor. "Ei senhor Cachinhos" ele chamou se referindo ao Matthew, utilizando seu cabelo encaracolado como apelido "você sabe que eu posso te prender só por isso que aconteceu agora, não sabe?"
"Sim, não sou idiota" Matthew proferiu, revirando os olhos como se a pergunta tivesse uma resposta óbvia o suficiente. "Mas também tenho consciência que se você fizer isso, não vai conseguir concluir sua fuga, Pequeno Príncipe." O ladrão agiu como se segundos antes não estivesse com medo da morte. Ele suspirou, guardando as palavras sórdidas que pensava para si mesmo. Virou-se e já estava ali, indo para só Deus sabe onde. O quase rei o olhava com curiosidade, analisando a reação alheia a uma possível ameaça de morte. Minutos antes estava assustado e irritado, e de repente se encontrava sem medo algum.
Humanos são como cães, demonstre medo e eles te atacaram, demonstre paz e a paz te darão.
Nesse momento, nesse exato instante, vossa alteza não pode deixar de se sentir alarmado. O que faria um jovem perdido em uma floresta de seu próprio reino? Rapidamente seria encontrado pelos guardas reais. "E-ei!" Ele recorreu a única pessoa que julgou ser capaz de lhe ajudar a pelo menos, se encontrar. "Cachinhos e-eu tenho uma proposta." A coroa gaguejou, embolando as letras, sílabas e versos em suas cordas vocais. Se Matthew não aceitasse não havia o que fazer se não vagar eternamente (ou até ser encontrado) por aí em seu próprio território.
"O que foi, Princepezinho?" O poeta respondeu, virando-se com um olhar de alguém já cansado do que acontecia.
"Lhe pago 300 aureus, em troca você me ajuda a fugir. O que acha?" Matthew jamais poderia negar sua expressão de total surpresa nessa hora, dando um passo para trás ao ouvir tal valor. Era absurdo. O tipo de quantia de dinheiro que daria para pagar as contas do mês de sua casa e ainda sobraria. Não teria que se preocupar com contas de água ou luz por pelo menos dois meses. O jovem das mãos leves pensou, quase pensando demais sobre o assunto, analisou a feição alheia, vendo que a proposta era feita genuinamente, a única coisa que pode lhe dizer foi:
"Aceito."
•••
"O instante é o arremedo de uma coisa perdida"
- Fernando Pessoa
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A Miserável Existência De Um Rei
FantasiaOs limites sociais em Bluefield. Matthew os odiava, e Thomas queria fugir a qualquer custo para não os encarar. Um encontro inusitado na floresta mistura essas diferentes realidades os levando a descobrir a resposta de grandes mistérios. O que os jo...