Querida Camelia

01: aquela que não voltou

UMA GAROTA DESAPARECEU. Mas não qualquer garota. Uma Heartlock; descendente caçula dos fundadores Heartlock, patronos da jovial Bogainville. A cidade estava em choque desde que a notícia espalhou-se pelos jornais e ruas feito poeira ao vento.

A menina é conhecida desde o nascimento. Notada por onde passa, não por seu nome, mas por sua empatia e falta de arrogância para com todos, sempre fazendo jus à beleza e educação cultivadas por suas duas irmãs mais  velhas e sua mãe.

Camelia Elide Heartlock, talentosa pianista, boa com amizades e ainda melhor em apaixonar-se por personagens literários; desaparecida.

A família Heartlock — composta por um casal, um par de gêmeas, um primogênito e a própria Camelia — era conhecida e respeitada por todos. E encontrava-se devastada há pouco mais de seis dias. Senhora Heartlock, dona de olhos azuis como céu e cabelos longos cor de nanquim — marca registrada da família, aliás — encontrava-se na sala principal da humilde, porém espaçosa, casa da família, subindo as colinas ao passar pela floresta. Os cabelos que sempre estavam impecavelmente presos em um penteado diferente para cada dia, agora jaziam sem forma ou brilho sobre os ombros caídos de sua dona. A pele naturalmente amarelada parecia pálida como nunca antes, e nem mesmo um pouco de pó havia sido aplicado no rosto daquela mulher.

Parada no centro do cômodo feito uma escultura de gesso, ela encarava o piano negro de cauda. Não era o mais novo modelo da década, mas era o modelo favorito de sua filha caçula. Sua flor de pele clara e olhos escuros como os do pai. Lábios sempre pintados de rosa, os vestidos sempre lisos sob o casaco. A memória mais vívida que tinha dela era o comichão em seu couro cabeludo, trazendo à baila a sensação dos dedos da filha por entre seus fios escuros, trançando, prendendo e puxando, criando uma obra de arte em sua cabeça a cada novo dia.

Camelia adorava ajudar a mãe com penteados, e Elide adorava deixá-la
fazê-lo. Sentia-se amada e cuidada por sua menininha.

Como sentia falta de sua menininha.
Soltando mais um suspiro frágil, a mulher apertou um pouco mais o robe de cetim vermelho ao redor de seu corpo maltratado pelos dias de angústia. Os  olhos cansados e os lábios trêmulos diziam mais sobre a mãe do que a dama. Aquela que ajudava os necessitados, que munia os pobres com comida e vestimenta mais vezes no ano que qualquer outro naquele lugar, que ajudava em obras de caridade, nos clubes femininos de chá e leitura, nos orfanatos e casas de repouso. Elide Heartlock era a fonte da qual Camelia, suas irmãs e seu irmão retiraram sua generosidade, gentileza e paciência. Se a menina ao menos visse o que tinha se tornado sua tão saudosa mãe, talvez não tivesse aceitado o convite que levou-a a seu fim.

— Querida — entoou Sebastian, marido de Elide, ao adentrar o cômodo. Usava suas típicas vestimentas de trabalho, das quais só havia disposto na hora do banho e quando deitava-se. O colete, apesar de perfeitamente abotoado, estava amarrotado sobre a camisa de cor escura. Sinal de que o homem havia passado mais tempo de seu dia frustrando-se com os detetives particulares e os investigadores da polícia, além de seu próprio trabalho junto  ao irmão mais novo na empresa da família.

Elide não respondeu ao chamado do marido, sequer o notou. Estava empenhada em relembrar cada canção que ouvira sua filha tocando naquele piano até a memória ser tão vívida que pudesse senti-la novamente.

Sebastian suspirou profundamente, tão derrotado quanto sua esposa, e chegou perto devagar. Estava tentando ao máximo não sobrecarregar a sua amada, para não tirá-la do torpor da ignorância e dor de maneira brusca. Até ter alguma notícia do paradeiro da filha, fosse qual fosse, ele deixaria a esposa encontrar conforto onde e como quisesse. Qualquer coisa que a mantivesse inteira. 

— Querida — tentou novamente, agora pousando as mãos nos cotovelos dela com muito carinho. Elide virou o queixo redondo um pouco na sua direção, mas foi a única resposta que Sebastian teve. — O jantar está servido. As gêmeas e Bem já estão à mesa esperando você.