Se você tivesse piscado, então eu teria
Desviado o olhar à primeira vista
Se você sentiu gosto de veneno, você poderia
Ter me cuspido na primeira oportunidade
.Would've, Could've, Should've

Tudo em Gaia era insuportável. O modo como as suas íris coloridas vistoriaram o meu rosto, a sua boca sutilmente separada e a feição contorcida, a sua voz baixa, a lascívia e a quase nula inocência das suas palavras era uma aglomeração de coisas que eu não suportava. Contudo, me intrigava. Era um sentimento controverso que manipulava meu sistema. O seu jogo era fácil de ler, prever e saber como contrapor. A sua linguagem gestual era um espelho das sensações que fugiam do seu controle. Mas havia algo. Eu a olhava e via camadas mais profundas. Tapadas. Engavetadas para que não fossem vistas. Ela parecia fazer do perigo um brinquedo no qual ela se entretinha nos seus intervalos. Ela movia-se em detrimento de quem ousasse esfaqueá-la. Ou pensar sequer em fazê-lo. E isso me fazia querer acabar com a sua confiança e forma destemida.Gaia tinha o que eu não queria que uma mulher perto de mim tivessem.

Enquanto limpava os armários, escutei os passos silenciosos de Gaia no tatame onde organizava a bagunça da sua última aula. Gaia tinha um andar mortal. Por mais que não estivesse a favor de analisá-la, era impossível não afirmar como ela foi forjada para ser vista como fatal. Não só pelo modo suave e articulado com que ela falava, mas também pelos seus movimentos calculados e sentidos apurados.

_Não precisa ficar aqui, eu termino sozinha — Ela abriu um dos armários e colocou as fitas —
_Você realmente não me escutou quando disse que vou te ajudar a terminar de organizar isso aqui, ou seja, sua opinião sobre a minha ajuda  aqui não é válida— sei que fui grosso, mas eu estava explodindo
_Quando você fala, eu não escuto
_Então, preciso adotar outros métodos—Abri o registro de água e deixei que ela limpasse a poeira das mãos. _Não tente arranjar solução para o que não tem. Você não vai me fazer mudar de ideia—Gaia tinha o seu olhar firme e certeiro em mim. Sacaneei o reflexo das suas emoções. Ela não exibia muitas, além da cólera e do sarcasmo. _Precisamos estabelecer regras — disse ao fechar a torneira e interromper o jato d'água. Peguei em um dos panos estendidos no puxador da porta do fogão e limpei as mãos. _ Eu vivo sem regras. Não irei fazer nada que pretenda que eu faça — replicou. _Mas você vai. — Coloquei o pano no meu ombro direito e firmei as mãos na superfície da bancada _Isso não entra em discussão—Os seus olhos nebulosos e o desenho do seu sorriso diabólico desestabilizaram uma parte de mim que não imaginei poder sentir. Que se dane. Era inegável que se essa mulher não estivesse ocupada me irritando e tivesse o cheiro de um atentado em carne e osso , seria manipulado de maneiras impensáveis e aceitaria de bom grado. Gaia era cruelmente hipnotizante. Era uma tentação moldada pelo próprio diabo. Até a droga do seu aroma era uma constante lembrança de que tudo nela é tão angelical quanto infernal. Mas o contexto era outro. Eu preferia me submeter à pior das torturas do que beijá-la. Nem em sonhos olharia para ela como se a quisesse. Habitar sob o mesmo teto que Gaia já era uma ideia delirante, mas ter que dar aulas junto com ela tem sido enlouquecedor .Por isso, para não gerar estragos, não podia abrir lacunas para entrar no purgatório que ela mesma carregava em seus olhos.
_A sua boquinha é viciada em dar ordens — ela disse. Os seus dentes alinhados e perfeitos morderam o lábio inferior. Aprumei a coluna, circulando-a. Dei passos o suficiente para que ela batesse as costas na parede e eu aproveitei a oportunidade para a encurralar.
— Já está tentando adotar outros métodos? Me botar na parede não é o melhor. _Estou pensando seriamente em ser eu a te colocar para fora de casa — ameacei. _Já estamos desistindo? Esperava mais da sua resistência. Ou não aguenta nem seis segundos comigo? A perversidade que carregou a sua pergunta me pegou desprevenido. _Não queira saber o que posso fazer com você em seis segundos. As paredes do salão pareciam nos consumir .Um milímetro de movimento e o meu peito estaria batendo no dela, a minha mão viajaria para sua bunda e a minha boca iria saborear a curva do seu pescoço, que se situava em um ângulo perfeito e ardiloso. Era ardente. O corpo de Gaia era flamejante. Quente pra caralho. E não me agradou como ela pareceu sentir calor advindo do meu corpo também. Cada célula minha teorizou as consequências de uma possível perda de razão e um movimento falho em provar um pouco daquela fonte de calor. E pelas suas íris atormentadas, eu soube que ela estava tendo exatamente a mesma leitura de campo. — Oh, eu quero. Faça deles puro inferno, assim como estou esperando fazer com você. Quem sairá daqui não serei eu,pode ter certeza que nossa família jamais apoiaria seu ato de desespero em não saber lidar com uma mulher que te responde a altura
O ódio ascendeu até o cúmulo da minha garganta pela a troca de palavras intensas entre eu e ela. Gaia tinha me tirado do sério. Me fez provar um gosto agridoce com a sua personalidade fundada em teimosia, deboche e acidez. A respiração errática e a fuzilada furiosa eram uma sombra dela na minha memória. Principalmente pela visão noturna. Ela era um encanto obscuro. Ela cortou o meu raciocínio apenas pela sua força bruta verbal, amaldiçoando meus pensamentos. Eles já não eram bons. Mas, naquele momento, já não tinham salvação.
_Que família Gaia?  Que eu me lembre você fez questão de enterra-los como indigentes, Sua existência é irrelevante.

Antes que pudesse me arrepender ,por uma questão de segundos, os meus braços foram colocados no peito e fui nocauteado, e arremessado ao chão. O pouco tempo que tinha para reagir foi o bastante para ter a minha mão ao redor de um pescoço e a outra tentando tirar a que me asfixiava na mesma região. A pancada da minha cabeça contra o piso havia sido forte e estremeci os dentes para não gemer de dor. Não havia espaço para que os meus neurônios fizessem o seu trabalho implacável de ponderar o que fazer a seguir, pois o peso repentino jogado no meu peito era um impedimento para analisar a minha ação seguinte. Com dificuldade, abri os olhos, sentindo uma fricção meticulosa na minha virilha que desencadeou sinapses dolorosas em meu cérebro. — Gaia encontrava-se sentada no meu colo, as suas pernas espremendo minhas coxas e as unhas cravadas penosamente no meu pescoço, enquanto a sua mão esquerda preservava o aperto no meu braço. De imediato, retirei a palma da sua garganta e, em um pulo ágil, ela saiu de cima de mim.Seus olhos coloridos arregalados, a mandíbula retesada apesar da boca entreaberta, As linhas crispadas da sua testa traduziram a desconfiança que pairou entre nós. Ninguém estava em modo de ataque, mas também não pretendíamos relaxar. Não imaginei que ela pudesse se mover com tamanha agilidade, a ponto de me jogar no chão, embora eu, provavelmente, tivesse o dobro do seu peso. Aquilo mexeu comigo. Eu nunca havia sido nocauteado por ninguém. Levantei, ainda com uma certa dificuldade pela presença fantasma do nocaute de Gaia. Ela já estava plena, mas ainda se via a marca da minha mão na sua pele. Eu deveria estar sangrando devido às suas unhas compridas que atravessaram o meu pescoço e queixo.

Os seus punhos fecharam e, da mesma maneira que tinha acabado de sentir as suas unhas perfurando o meu pescoço, imaginava-as perfurando a sua palma. — Você tem razão—Havia falhas na articulação das sílabas. Era como se ela reprimisse um choro, que tentava segurar furiosamente.

Eu queria pedir desculpas, queria voltar atrás, queria dizer que o que eu disse não era verdade. Eram tantas coisas ,mas Gaia me deixava com mais dúvidas.
_Aconselho que se afaste para que não se sinta tão sujo quanto eu. —Os seus olhos coloridos exalavam um fogo intenso e caótico quando ia em direção a saída, a sua caminhada, deixando os rastros do seu ódio. Não disse mais nada e a observei sair do salão e fechar a porta. Não permaneço muito tempo paralisado tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
Aquilo não tinha como dar certo

A sua existência era mais do que relevante, no momento

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