Não havia silêncio entre nós. Nosso grupo era de trabalhar em meio a burburinhos incessantes - onde ninguém conseguia se entender direito e cada um procrastinava e matava tempo ao invés de terminar suas respectivas partes. Nicole e Alan estavam encarregados de colar, numa cartolina, gráficos estatísticos e escrever legendas logo abaixo deles.
Mike e eu iríamos apresentar o trabalho na segunda-feira - a primeira apresentação da aula - e não existia pressão maior do que a de precisar decorar 3 páginas de um roteiro escrito em Arial 11 pela pessoa/leitora mais inteligente/assídua do grupo: a própria Nicole. Ela conhecia inúmeras palavras complicadas que desafiavam totalmente a nossa dicção, o que dificultava e muito nossos ensaios. Toda vez que gaguejamos, o Mike ficava vermelho de vergonha, escondia o rosto com o papel e balbuciava a mesma palavra repetidas vezes para si mesmo; eu olhava para a Nicole com indignação e tínhamos a seguinte conversa:
- Dava pra botar um sinônimo não?
- Eu mandei o roteiro em PDF no grupo e todos vocês disseram que ele estava 'lindo', 'maravilhoso', 'perfeito' - ela abriu um sorriso irônico e usou um tom debochado. - A culpa não é minha se você tem uma dicção péssima e não leu o roteiro antes.
- Eu não li o roteiro antes porque você enviou ele às 11h da noite! Tava morto de sono, pô.
- Você pode parar de tentar fugir pela tangente? Mandei ele terça-feira. Cê poderia ter lido antes, só não leu porque é incompetente mesmo.
- E se a gente riscar as palavras que não conseguimos pronunciar direito e escrever sinônimos do lado? - sugeriu Mike, baixando a folha que estava na frente do rosto.
Revirei os olhos e soltei um suspiro cansado:
- Isso vai dar muito mais trabalho.
- Devia ter lido o roteiro. - Nicole sequer se deu ao trabalho de levantar a cabeça para debochar.
- Foi mal aí, Lipe - falou Mike. - Se tivesse me pedido ajuda com a apresentação antes, eu teria feito o lance dos sinônimos pra você. - ele colocou a mão no meu ombro e eu sorri.
- Você só precisa ler e decorar o roteiro, Felipe. Sei que é exaustivo quando se trata de 3 páginas, mas você já passou por coisa pior, lembra? - Nicole me encarou com consolo emanando no olhar e um sorriso suave e bonito. Ela falava de quando protagonizamos, juntos, uma peça de teatro no ano passado, onde tivemos de decorar 12 páginas de roteiro.
Suspirei e dei um sorriso esnobe.
- Lembro. Eu arrasei naquela peça.
- Você quis dizer "Nós arrasamos", não é? - ela franziu o cenho.
- É! I-isso aí mesmo. - gaguejei e virei meus olhos para o Mike, que dava pequenas risadas escondidas atrás do papel.
- Que bom.
- A gente pode, por favor, voltar ao trabalho? - irrompeu Alan, parecendo frustrado, mas mantendo a voz calma.
Todos o encararam e um silêncio desconfortável se instalou por algum tempo. Eu voltei a olhar para o roteiro, inconformado com as palavras complicadas; Nicole, para o gráfico que estava grudado em suas mãos; Alan, para a tesoura que cortava um pedaço de papel; e Mike, para a porta da sala.
- Não podemos terminar sem a Soph. - declarou.
- Ela disse que tava vindo, não era? - perguntou Nicole.
- Isso já faz uns 50 minutos. Tem como mandar uma mensagem pra ela? Vai que aconteceu algo. - Mike me encarou com uma genuína preocupação transparecendo no olhar.
- Eu posso mandar.
Coloquei o roteiro na mesa e peguei meu celular. Por alguma razão, minha mão tremia. Senti meu nariz escorrer enquanto uma leve vertigem me fez errar alguns passos. Fechei os olhos e balancei a cabeça rapidamente. A Nicole chegou a perguntar se eu estava bem, acabei falando que sim - porém, tanto eu quanto ela sabíamos que era mentira - na verdade, o que todos aqueles sintomas incomuns representavam era um mau presságio. Minha testa chegou a brilhar de suor. Com o celular em mãos, respirei fundo e liguei a tela. "Três ligações perdidas de Soph" era a primeira notificação. Um calafrio me subiu a espinha.

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A Espiral
HororUma coletânea de contos curtos de terror inspirados em pesadelos que tive ao longo de 1 ano. "A Espiral" nada mais é que uma olhadela atrás das cortinas escuras e imaculadas da minha mente. Uma revisitação catártica para mim; uma descida em espiral...