E então, o tempo passou

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~ Lily Argent ~

   “Se cuida, Lily” eu bem me lembrava da voz daquele xerife que há muito me resgatara. Por algum motivo, ela parecia soar a mesma do homem que me arremessara na primeira cela que vira disponível, em duas ocasiões distintas: uma enquanto o mundo ainda era mundo, e outra agora, numa época em que os corredores deste presídio se tornaram tão familiares quanto a antiga casa em que costumava morar com minha mãe e o Phill.

   Não que algum dia tivesse tido a pretensão de me colocar nessa situação — afinal, quem em sã consciência gostaria de ficar presa? — contudo, tampouco me arrependia dos caminhos que haviam me levado para o lugar em que estou no momento.

   Phill havia feito por merecer.

   — Pronto, agora que já tomamos as medidas certas, talvez seja a hora de conversarmos apropriadamente. — o homem que algum dia já foi o xerife Grimes declarou, colocando-me para sentar no colchão mofado da diminuta cela. — Lily, lembra-se de mim? — inquiriu com cautela, me analisando de cima a baixo como se eu fosse um experimento seu que havia dado errado.

   Não seria o primeiro a pensar assim de mim.

   — Sim. — foi a resposta que me limitei a dar, e algo em seu rosto entregou que desejava que eu falasse mais. — Lembra-se de como vim parar aqui? — resolvi então devolvê-lo com um comentário atravessado.

   Afinal, o que raios ele esperava de mim?!

   — Sim, eu me lembro. — admitiu com mais tristeza do que eu esperaria de sua parte. — É justamente por isso que estamos aqui, afinal, me lembro de pelo menos “duas Lilys”: uma que salvei, e outra que prendi. — a seriedade em seus olhos azuis me arrepiou, não pude negar. — Gostaria de saber com qual delas estou lidando no momento.

   Engoli em seco, ciente de que por mais que eu quisesse lhe dar mais uma série de respostas abusadas, isto pouco me ajudaria a sair daquela enrascada: um jovem asiático vigiava a entrada da cela, enquanto uma moça se colocava ao seu lado como suporte, e nenhum deles parecia estar disposto a “bater um papo”.

   De todo modo, de todos eles o que mais parecia disposto a me matar era o marrento que cuidava do outro canto da cela. Claro que não podia julgá-lo, já que o havia esfaqueado em sua panturrilha.

   “Não deixe que cheirem seu medo, Ratinha. Senão estarão a um passo mais próximo de se usarem dele contra você.” A voz de Shonda ecoou em minha mente, me lembrando o quanto aquela velha senhora me ajudara a ser mais do que aquela menininha covarde, que por um lapso de coragem havia matado o próprio padrasto.

   — Não faz diferença. — o respondi cabisbaixa, dando de ombros. — A verdade é que todos nessa sala querem meter uma bala na minha cabeça, se não pelo que eu fiz antes, certamente pelo que fiz aquele aí! — apontei categoricamente para o brutamontes, que mais parecia um animal selvagem pelo modo como me fuzilava com os olhos.

   Me sentindo farta de todo aquele cenário, levantei-me abruptamente da cama, vendo de relance o cara que machuquei fazer menção de vir para cima de mim. No entanto, antes que qualquer um de nós pudesse fazer outro movimento, o xerife Grimes estava novamente a minha frente, sua mão segurando meu cotovelo com força, enquanto seus grandes olhos azuis me fitavam em advertência.

   Me vi repentinamente prendendo a respiração diante dele.

   — Admiro que tenha preferido desabafar conosco, ao invés de nos encher de mentirinhas bonitas para fugir de qualquer punição. Portanto, permita que eu retribua o gesto: Sim, em outro cenário nós teríamos te matado por ter machucado um dos nossos. — confessou num timbre baixo, mas acima de tudo calmo, como se soubesse que eu era capaz de receber a verdade. — Temos armas, temos facas, e determinação o suficiente para isso. Mas não o fiz, Lily, pois por mais que não acredite, sua resposta vale para mim. Vale, porque eu conheci uma menina que nenhum dos outros dessa sala conheceram, e porque espero que eles ainda tenham a oportunidade de conhecê-la. — acrescentou, e um nó se projetou em minha garganta com suas palavras.

   Por um momento, meu subconsciente viajou ao passado, e pude me ver sendo segurada pelo xerife Grimes mais uma vez, como se aquela versão fraca e desesperada de mim tivesse apenas hibernado dentro de mim, e o homem a trouxesse à tona.

   Simplesmente não haviam palavras que pudessem expressar o quanto odiei tal sensação.

   Infelizmente, tampouco consegui exprimir qualquer reação a suas palavras, e com olhos marejados o vi me soltar delicadamente, com seu amigo brutamontes abandonando a cela para pouco depois ele fazer o mesmo, me deixando ali. Quando me dei por mim mesma, já estava batendo contra as grades, gritando de ódio, quase implorando que algum deles me tirasse dali.

   Eu simplesmente não podia deixar que “Lily Argent” voltasse à tona.

Muddy Waters - The Walking DeadOnde histórias criam vida. Descubra agora