Coração da Noite

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Quando Saryna nasceu, havia um cobertor branco e gelado sobre o mundo.

O evento espalhou alegria, contagiando os coelhos das Tocas. Era, afinal, a primeira ninhada da Soberana.

Porém, quando a pelagem de Saryna brotou cinza e manchada entre os irmãos cor de algodão, risos se transformaram em sussurros.

"É uma maldição.", a Soberana a empurrou para que os outros filhos pudessem mamar.

"Não, já vimos isso.", defendeu o pai, encostando um punhado de grama contra o focinho da filha. "O coelho mais velho dos Aruna também nasceu assim."

"E então o que aconteceu? Raposas devoraram metade da família e demoramos uma temporada inteira para cavar novas tocas. Não a alimente, ela deve ficar para trás."

Como uma força invisível discordando da Soberana, Saryna viu os irmãos morrerem antes mesmo de decorar seus nomes, mas não antes de aprender que, se fosse ela, haveria alívio ao invés de luto.

Sua pelagem escura era perfeita para passeios notunos. Ela se esgueirava entre árvores de casca grossa e pedras cobertas de musgo, camuflada das corujas. Passava as noites buscando insetos e pequenos animais famintos, dando-lhes comida e um lar que cavou sob raízes altas. Antes do raiar do dia, voltava às Tocas.

Em uma noite, à distância, Saryna viu um animal invadir seu refúgio. Ele enfiou o focinho na toca, chafurdando, como se procurasse por algo. Ela nunca tinha visto uma raposa, mas o rabo comprido e a cor laranja da pelagem batiam com a descrição da criatura. Antes que pudesse controlar o reflexo de fuga, suas patas traseiras bateram contra o chão.

O animal recuou, lançando um olhar desinteressado. O pânico de Saryna, no entanto, foi substituído por raiva quando ele devorou dezenas de formigas em uma só lambida.

"O que pensa que está fazendo?", ela fechou a distância entre eles com um pulo.

"O que parece que eu estou fazendo?"

Não houve ameaça de garras ou mordidas, o que Saryna considerou incoerente para uma raposa.

"Essa é minha casa! E meus amigos!", rebateu.

Olhinhos pretos a estudaram antes de voltar a atenção para os insetos dentro da toca e de volta para ela, em confusão.

"Você é uma coelha."

"E você é uma raposa."

Ele fez um barulho parecido com um espirro que Saryna concluiu ser uma risada.

"E desde quando raposas comem insetos?"

"Me diga você."

"Não sou uma raposa.", disse com convicção.

"Então é o quê?"

Ele olhou para cima, procurando uma explicação que não encontrou.

"Não sei."

"Então como sabe que não é uma raposa?"

"Eu sei o que não sou."

Saryna se aproximou devagar. O corpo dele era coberto por pêlo espesso, mas as costas e a barriga eram negras como amora madura. A magreza despontou na sombra das costelas quando ele estremeceu de frio.

"Você come... coelhos?", ela hesitou.

"Não.", sacudiu a língua comprida no ar. "Mas com a fome que estou, posso reconsiderar."

Ela tensionou o pescoço, mas ele espirrou de novo e Saryna percebeu que ele ria de coisas que ela julgava perigosas.

"Não pode comer meus amigos."

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