"Ser livre assim, aí de mim..."

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Nas férias de meio de ano de 2013, eu viajei. Não que isso seja novidade, eu viajava frequentemente. Mas esse ano foi diferente: Fui para o interior de Minas, numa cidadezinha chamada Santa Rosa do Norte (não, não existia a do Sul). Parecia uma cidade perdida no tempo, com pouquíssima área urbana, o centro da cidade quase não tinha casas, tinha um banco, um cartório, a prefeitura da cidade, um hospital, e uma faculdade com poucos cursos, na época tinha apenas Veterinária, Agrônomia, Zoologia... Cursos voltados a áreas rurais. Os pouco prédios eram dos donos de comércio do centro e estudantes. O prefeito da cidade, apelidado carinhosamente de Xerife Trindade, era o dono da maior fazenda. Tudo isso foi o que Jenna me explicou enquanto saiamos do condomínio.

- Santa Rosa do Norte? - Perguntei. - Porque o nome? - Ela sorriu, eu fiz a pergunta que ela queria ouvir.

-Theodoro Fernando Rosa do Norte, um peão que fez a primeira fazenda do lugar que hoje é um museu em sua homenagem. - Jenna molhou os lábios. - Prepare-se para conhecer um boiadeiro incrível.

- Meu herói é o Beto Carreiro. - Falei, fazendo referência a vez que fomos ao parque e vimos todas as peças que conseguimos, até o passeio de trem onde somos pegos por bandidos e o ele e seu cavalo vem nos salvar.

- Beto Carreiro é só mais um peão comum perto de Rosa do Norte. - Ela ajeitou o corpo, os país dela riram no banco da frente. - Theodoro Fernando era de Mato Grosso, num lugar perto de um rio que eu não lembro o nome agora...

- Jenna Ortega esqueceu um nome? - Brinquei, estávamos fazendo muitas brincadeiras. O clima de implicância era nítido, uma novidade recorrente: De uma hora para a outra, virou comum a gente ficar zoando uma a outra. Não que antes não acontecia, mas agora era mais.... cotidiano. Fazia parte de nós. - Vou até rezar um terço, vai chover a viagem inteira.

- Ha ha. - Ela disse, com uma expressão séria.

- São Manuel, Jenna, é o nome do rio. - Disse o pai dela, rindo.

- Isso! São Manuel! - Ela se animou novamente. — Rosa do Norte estava com seu gado em sua fazenda, perto do Rio São Manuel, que fica no Norte de Mato Grosso. Então, a área teve a maior chuva do milênio e ele precisava salvar seus animais. Em 20 dias de viagem ele levou três mil animais de quase o fim de Mato Grosso para o norte de Minas Gerais sem nenhuma perda, lá ele construiu sua fazenda, era rico mesmo.

- Isso em que ano? - Perguntei.

- 1932. - Ela respondeu.

- Meu deus, como cabe tanta coisa nessa cabeça? - Olhei ela de pertinho.

- Na verdade eu sou um robô. - Ela falou, bem séria. 4 segundos de silêncio e ela começou a mexer os braços mecanicamente. - Bippie-Bippie!

- Você é idiota! — Empurrei o ombro dela.

A viagem seguiu entre músicas cantadas, histórias, e claro, as implicâncias com ela. Jenna parecia não se importar mais em parecer idiota, ou boba, na minha frente. E ela era idiota. Uma tremenda idiota. Garota boba, com seus sapatos franceses, camisetas de banda e jeans justos. Continuamos a viagem, tocou uma música que eu não tinha escutado antes. Eu não sabia, mas o que tocava era Novos Baianos o que em uma música ganhou todo meu amor. Ortega falava de tudo, contava coisas das mais aleatórias, como sempre fazia. Ela não deixava o assunto morrer, mas notou quando meu olho fechou de sono por acordar cedo e me deixou escorar nela para dormir. Quando acordei, o carro estava parando e todos tenso.

- O que houve...? - Murmurei.

- O pneu estourou. — Tia Cris contou. Meu corpo despertou assustado.

Descemos do carro, Jenna estava séria e tinha puxado as mangas da camiseta do Red Hot, a mesma que usou pra dormir no aniversário dela. O pai de Jenna pegou o step e o macaco, ela logo se pôs a ajudar. Meu deus, não existe nada que essa garota não saiba fazer? Me escorei no carro, a vendo sujar as mãos de graxa. Então o suor escorria pela testa e ela passou a mão, sem notar que sujou o rosto. Fiquei a encarando com o sorriso, a mancha de graxa na testa. Eu sinto falta desses momentos onde eu só parava para olhar ela. Gostava do jeito dela de observar os lugares, com os olhos atentos a tudo. Eu queria poder ver o mundo por trás dos olhos felinos de Ortega algum dia. Isso talvez tivesse mudado muita coisa. Ela nunca me disse muito, acho que nunca foi de falar sobre isso. Ela parecia ver além de tudo. Além do mundo. Quando chegamos no sitio, dez horas depois, eu já tinha dormido em todas as posições possíveis do banco de trás, já tinha babado no ombro de Jenna, falado dormindo, reclamado de dor nas costas, lido todas os doze quadrinhos que ela trouxe, tinha ouvindo o disco todo dos Novos Baianos e feito Tio Marcio parar em todas as cidades para mim fazer xixi. Escutei histórias da Tia Cris, batemos papo com um caminhoneiro no almoço, apesar de cansativa, só o percurso da viagem já estava sendo incrível.

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