Os dois continuam, na mesma direção que o garoto se dirigia desde o começo.
— Menino, porque se sente dessa forma? Quando peguei em sua mão, ela estava gelada, muito gelada. Eu te assusto tanto assim? — pergunta a capivara, ainda com sua voz grossa e assustadoramente trêmula, mas em um tom dócil.
O menino olha para baixo, pensando. Até que enfim decide falar algo.
— Não, é que... eu não conseguia falar. Quando você chegou perto, eu senti uma pressão vindo do fundo do meu âmago, e, mesmo que eu tentasse, não conseguia dizer nada.
— Hm, acho que todos ficam assim quando estão cara a cara comigo. Uma parte deles, uma parte bem forte deles.
— Uma parte? Como assim?
— Bom, é simples, garoto. Tenho certeza que antes de me encontrar, você viu algumas coisas estranhas. E também tenho certeza que, por mais estranho que aquilo parecesse ser, algo em você não contestava, e até entendia, mesmo que não fizesse nenhum sentido. Não é?
— Eu acho que sim...
— Porém, eu posso te explicar o porquê de você concordar com tantas coisas esquisitas, que de primeira vista, são incoerentes. Ou pelo menos tentar.
— Então tem uma explicação? Eu estava começando a achar que tudo não passava de um sonho. Ou que eu estava em coma, sei lá.
— bom, é quase isso. Na verdade, eu não sei como você veio parar aqui, e nem porquê. Não sei de você e nem dos outros que já me encontraram.
— Tiveram outros?
— Sim, tiveram, mas é diferente.
— Ah... e então, o que são essas coisas e o que é você?
— É bem mais simples do que parece, meu amigo. Nós somos seus sentimentos e pensamentos.
— O que? Não entendo...
— Tudo isso que viu, tudo isso que vê, tudo é seu, está dentro de você.
— Tudo o que vejo? Até esse lugar sem fim totalmente isolado e vazio?
— Sim, até esse lugar sem fim. Mas não, não é um lugar isolado e vazio, você só não quer que ele seja melhor, não quer que seja mais bonito, mais cheio. Não o suficiente. O mesmo vale para esses seres estranhos que você viu por aí.
— Hã... — O garoto se vê calado, tentando processar tudo.
— Garoto, me conte sobre as fadas sem rosto, sobre o que elas falavam?
— Bom, elas falavam algumas coisas, na verdade, não paravam de falar nunca. Mas, falaram sobre meu rosto, como se tivesse algo errado comigo. E quando citei meu trabalho, falaram que era bem chato, mas com essa parte eu até concordei. — Respondeu o menino, manifestando um leve sorriso de canto.
— Entendo, talvez seja a mistura de alguns sentimentos similares, como baixa auto-estima e frequente desinteresse. Você é bem desinteressado em tudo, não é?
— ah, talvez um pouco — Diz, sorrindo.
— Tenho certeza que frequentemente se interessa por diferentes coisas, mas logo perde totalmente o interesse. Assim como aquelas fadas.
— É, até que faz sentido, mas me julgar não eram as únicas coisas que elas faziam.
— Talvez, essa balela toda que falavam, era a forma que você inconscientemente encontrou para falar com elas. Em forma de diálogos e questionamentos.
— Hm, entendi. Mas, e a rã montada no caramujo?
— O que? Você viu uma rã montada num caramujo? — Fala a capivara, rindo, com sua voz grave.
— É, lá no ônibus, no caminho pra cá. Não falavam nada, apenas passavam de um banco à outro.
— Então foi bem no começo da sua viagem, não? Bom, se não fizeram nada, talvez seja como a personificação da sua criatividade. Passando por ali.
— Minha criatividade? Representada por uma rã e um caramujo? Concerteza por isso eu não esperava.
— É, acho que nunca há como prever-mos nossa criatividade, de repente ela só vem à tona, de formas aleatórias, cabe a nós aceitar-mos.Os dois riram, e continuaram caminhando, pareciam bons amigos. Em momento algum pararam de andar, continuavam em direção ao lago. Então, depois de alguns poucos minutos calados, o garoto pergunta:
— Mas e você? Que Sentimento meu você é? Ou quais sentimentos você é?
— Eu? Eu sou seus sentimentos ruins, garoto. Todos misturados em um só. Tristeza, inveja, raiva, maldade, avareza e todos os outros diversos sentimentos e pensamentos ruins que você manifesta vez ou outra.
— É por isso que tive um choque e me senti paralisado quando fiquei à sua presença?
— Sim, provavelmente. Não é todo dia que ficamos cara a cara com a personificação do que é ruim.
— Ainda mais quando essa personificação tem a aparência de uma grande capivara — Fala o menino, rindo.
— Muito engraçado — Responde a capivara, também risonha.
— Mas, escuta, você não parece ser algo tão ruim assim, sabe? Sendo a personificação de tantas coisas ruins.
— Não, você está errado. O que aconteceu é que, depois de passar um tempo com seus sentimentos ruins, você começou a aceita-los, como se fosse algo bom. Mas não, eu não sou algo bom. O mesmo aconteceu com as fadas, você não gostava delas assim que as viu, mas depois de conversar um pouco, viu que aceita-las não era algo tão ruim assim.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Entregando Panfletos
Historia CortaSó mais um dia normal entregando panfletos, pelo menos era isso que deveria ser. Entretanto, coisas estranhas começam a acontecer e, de repente, tudo muda completamente de rumo.