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O fantasma a encarou com seu rosto deformado. As algas e conchas ao redor se arrastaram vagarosas, como um exército a comando do general. Atrás dele, nada se via da equipe além dos gritos e as lanternas piscando longínquas. Os cabos e válvulas na parede se contorciam e giravam imitando um monstro com tentáculos. O barulho das portas abrindo e fechando loucamente formavam a percussão de um jazz apocalíptico, junto aos vidros se quebrando, o sonar e as vozes que passavam de sussurros a gritos desesperados. Carol podia sentir as algas escalando seu corpo, prendendo suas pernas, impedindo-a de se mexer.

- É você que está controlando esse submarino não é? Você e seu capanga mataram todo mundo aqui dentro. Você atirou no próprio soldado a queima roupa. Tudo isso pra no final ser queimado vivo pela anomalia.

Carol conseguiu arrancas as pernas do casulo de algas, se preprarando para disparar rumo ao corredor. Marshall permaneceu quieto.

- Essa expedição toda foi um erro. Mas se você nos poupar, prometemos que não vamos revelar nada. Se a gente morrer aqui, vai atrair a atenção para esse submarino e toda a verdade vai ser descoberta.

Marshall não disse uma única palavra. Não haveria negociação. Carol não podia deixar seus amigos para trás como aconteceu com João, com seu irmão, com sua mãe. Com as algas e conchas ainda escalando seu traje, ela pulou através do corpo espectral que se desmanchou como fumaça e partiu em direção das lanternas. As paredes pareciam querer atacá-la através dos cabos e pedaços enferrujados cortantes indo de um lado para o outro. Foi atingida e quase caiu três vezes antes de encontrar o trio. Marcos estava ferido, perfurado por lascas de metal, mancando apoiado nos ombros de Elisa e Beatriz. Os três gritavam e gemiam de dor envoltos por algas e conchas.

- Carol! - disse Elisa - Ajuda! Precisamos ir rápido, ajuda a carregar o Marcos.

- O que está acontecendo? - perguntou Marcos.

- Eu não sei como explicar - disse Carol segurando o tronco do colega e correndo para a sala de comando -, mas a radiação do submarino vêm do fundo do mar do Japão. Ele passou por alguma coisa, uma anomalia, um portal, eu não sei. Provavelmente os tripulantes japoneses foram contra o submarino descer até as profundezas e se revoltaram, então o capitão fez um massacre. Ele está até agora controlando esse lugar.

- Você não tá falando coisa com coisa - disse Beatriz.

- Vamos escapar e depois falamos sobre isso - respondeu Carol arrancando mais algas do seu corpo.

Na sala de controle, o periscópio girava loucamente, soltando faíscas. Os quatro tiveram seus calçados perfurados pelos cacos de vidro no chão. Marshall tinha desaparecido. As escotilhas começaram a se abrir e fechar sozinhas com velocidade, bloqueando a passagem para a sala de torpedos onde estava a escada para a superfície. Em questão de segundos, o periscópio se soltou do teto e a água começou a adentrar a sala de comando. O submarino estava para ser inundado. Se antes não havia problemas com o motor nuclear, ele agora poderia explodir se a água do mar alcançasse o motor.

- Como isso é possível?! - gritou Marcos. Os quatro ficaram paralisados, enquanto a água começava a subir. Parte dos papéis que caíram no chão começaram a boiar, junto com vidro e ossos. As algas ainda escalavam os corpos dos quatro. Na cabeça de Carol, só havia uma solução.

- Eu vou segurar as escotilhas. Fujam!

- O que? - questionou Beatriz, indignada - Não podemos deixar você aqui. Não vamos deixar mais ninguém morrer.

- Não tem outro jeito. Alguém tem que segurar a porta da sala de torpedos para os outros subirem na escada e depois a do corredor para a água não entrar no resto do submarino e causar um acidente nuclear. Um de nós quatro vai ter que morrer para salvar a cidade. Eu vou fazer isso.

- Eu vou - disse Marcos - Eu sou o que tem menos chance de sobreviver aqui. Vocês podem fugir.

- Você está muito fraco, não vai conseguir. Eu vou bloquear as portas.

- Carol - interrompeu Elisa - Você não...

- Vão logo! A água tá quase alcançando as portas - Carol correu para a porta da sala de torpedos e a segurou com força antes que fechasse novamente - Vão! Eu não vou mudar de ideia.

Foram alguns segundos de hesitação, com a água subindo cada vez mais, antes que os três corressem para a escotilha. Lágrimas podiam ser vistas debaixo das lentes das máscaras, mas Carol não conseguia chorar. Ao mesmo tempo que sentia o desespero e a constante vondade de mudar os planos, ela sentiu algum tipo de paz, algo que ela não sabia explicar. Quando o trio subiu pela escada, Casol soltou uma porta e correu para a outra. Seu corpo ainda era escalado por algas. Os papéis reunidos pela tripulante assassinada já se desmancharam na água salgada, a verdade por trás de uma história trágica se perdendo para sempre.

Carol enroscou um cabo na porta circular, tentando prendê-la fechada, mas não foi o bastante. Ela teve que enroscar os próprios braços e pernas no cabo e nas engrenagens da porta, prendendo-a. Gritos de dor foram expelidos de sua garganta enquanto a água tomava a sala de comando, sem conseguir vazar para o resto do submarino. Ela não sabia se realmente conseguiria impedir a explosão, mas teve certeza que seu fim era inevitável quando sentiu seus ossos serem quebrados pelos cabos e engrenagens.

A cintura de Carol foi envolto pelas algas, depois o tronco, depois os braços. Quanto mais tentava se libertar, mais presa ficava. Não demorou para que envolvessem seus ombros, pescoço e cabeça, apertando como uma cobra constritora, esmagando os ossos e órgãos. A passagem do ar pelo sistema respiratório ficava cada segundo mais difícil até tornar-se impossível. As últimas coisas que passaram pela cabeça de Carol foram o barulho da água a engolindo por inteiro e centenas de gritos dos fantasmas que antes sussurravam. Carol teve a impressão de ter visto o rosto do Capitão Marshall e do seu irmão. Em poucos minutos, ela se tornou uma com o mar.


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Atenção: o final do conto foi alterado em 8 de agosto, alguns meses depois do concurso, quando tive mais liberdade com relação à quantidade de palavras (o conto precisava ter no máximo 5 mil palavras), pois achei que o final antigo era muito abrupto. Antes desse dia 8 de agosto, esse capítulo tinha 298 palavras e o total do conto era 4993, mas a nova versão ultrapassou o limite de 5 mil palavras.

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