Inconstância

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Capítulo um

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Capítulo um

Hoje eu acordei mais distante que o normal: É como se o mundo estivesse congelado em um canto do meu quarto e eu estivesse completamente conectada aos meus pensamentos mais inquietantes.
Não sei explicar de onde eles vieram, ou para onde vão, afinal tudo têm o seu ponto de entrada e saída, o seu começo e o seu fim, tudo que começa têm onde e como parar. Ou será que não?

Em meio as dúvidas, é melhor optar pelo mais racional: levantar da cama.
É que as vezes, prefiro ficar na inércia de sentimento. Quieta no meu canto. Com um buraco aberto, vázio, Se enchendo de um colapso de solidão. Daí você tenta se preencher, esquecer o sentimento e até mesmo passar por cima dos seus limites, pra tentar na verdade, esquecer quem um dia te cativou como ninguém. Por que este sentimento indefinido? Por que essa sede insaciante de preenchimento? Por que procurar em qualquer dimensão, o que se pode encontrar a qualquer instante, sem medir esforços?

Um labirínto sem fim.

É que cada vez que se encontra algo que trás à tona a esperança, solta uma pequena faísca flutuante, cheia de desejos. Daí você abraça com força cada desejo, cada imaginação irreal, cada beijo perfeito e momentos únicos. E então vem a realidade, toda armada, pronta para destruir cada sonho encantado, cada principe encantado, cada buquê de flores e cada olhar romântico. E você percebe, que foi só um sonho. Um inevitável sonho. Que se tornou uma coleção de planos, apenas.

Em meio aos meus embaraços, ouvi um ruído irritante na porta.

- Querida, já está na hora de acordar. Você está atrasada para a faculdade!

Tia Cris é uma mulher incrívelmente amável, com uma elevada dose de bom ânimo. Sempre acorda saltitante. Nunca, desde quando iniciei minha temporada no Brasil, à vi reclamar de algo ou se estressar. Por um lado à admirava muitissímo, por outro me questionava o que havia de errado com ela.

Ninguém é assim.

Hellou, são 6:40 da manhã. Alguém avisa isso pra ela? Ninguém acorda cantarolando desse jeito uma hora dessas.

Vivi na Califórnia desde os seis anos de idade e já tenho vinte e um, presumo que minha identidade foi gerada lá, jamais se encaixaria a ninguém daqui.
Não sei nem se ainda falo o português direito, que dirá ser amigável com as pessoas. Quanto a isso, preciso ter umas aulinhas com tia Cris. Só não garanto muito sucesso!

Isso me fez lembrar de Kile e Julia (jamais vou me esquecer deles) que foram os primeiros a descobrir minha farça. Eu achava que estava escondendo tudo tão bem. Mais Graças ao meu registro de nascimento antigo escondido cuidadosamente no meu quarto, mais pelo que percebo, nem tão escondido assim. Descobriram minha naturalidade brasileira em milésimos de segundos, nem pisquei e quando me dei conta Kile já estava com ele colado em suas grossas e másculas mãos.

Droga Kile. Droga, droga, droga.

- Você é muito babaca! - sem querer deixei escapulir minha linguagem nata.

Fazia isso sempre que me irritava com minha mãe, jamais havia feito isso com Kile, por mais irritante que ele fosse. Porque agora, céus? As coisas começavam a piorar e eu não gostava do rumo que estavam tomando.

- which? what you said? (O que? O que você está falando?) - Disse Kile não se controlando de tanto rir.

Ele gargalhava tanto quando me viu falar pela primeira vez em português - brasileiro, que corava.

-I said you until it's kitten.
(eu disse que até que você é gatinho) - menti, descaradamente e rimos o suficiente para ele não me perturbar tanto naquele dia.

Eu, Kile, Julia. O trio perfeito. Me pergunto se encontrarei uma conexão tão forte como a deles. Julgo até ser, impossível. Vivíamos momentos tão intensos. Nossa amizade, Era como um pedacinho do céu, que eu podia ter em minhas mãos. Trazia leveza e um senso de bondade. Era simplicidade fugaz, diamante precioso instalado em meu coração. Algo que eu queria guardar, proteger, amar. E agora estava tão distante deles...

Lembro com exatidão o quanto a risada de Julia era escrota e como ela induzia-me a sair de qualquer melancolia. Não existia tempo de inverno em nossa amizade. E como Kile, mantinha-me isolada da agúnia, que ficava bem, mais bem distante de mim quando ele me fazia aquelas piadas sem graça. Até delas deu pra mim ter saudade agora.
É que cada risada, era um calmante sem efeitos colaterais.

Ah, se a saudade não fosse pressa de amar. Meu coração não cavalgaria tanto, no meio de uma floresta de sentimentos sem fim. Maldito cavalo, que insiste em correr a 1000 km/h cada vez que me lembrava de Augustus. Nem ao menos pude dizer adeus.

Ele se foi.

Com todo aquele sorriso despreocupado, aquele cabelo emplumado, aquele jeitinho de me levar por sobre as nuvens. E aquele olhar... Sempre veio sobre mim como um feitiço, inegávelmente atraente. Tudo sumiu. Tudo virou pó. E era lá que ele estava, no pó da terra. Sem escolha de querer ficar ou não. Afinal, era pra lá que todos nós estavamos destinados a ir querendo ou não. Ele se foi tão cedo, 23 anos apenas. E me deixou, sem ao menos dizer as três palavrinhas mágicas. Me restando apenas o remorso, um colapso de exaustão, lembranças, marcas que jamais se apagarão.
Uma esteira de agúnia. Um espaço, que está totalmente fora de órbita, e que jamais seria preenchido.
       

                   °   °   °

O alarme tocava com insistência, querendo me arrancar a força da cama. Isso só significava uma coisa: Hora de ir para a faculdade. Já estava na hora de encarar a realidade. Por mais inconstante que ela fosse. Por mais supérflua, pra mim, que ela fosse.

A PRISIONEIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora