Olhos Negros

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Eu e minha mulher estávamos no nosso típico final de tarde, sentados vendo televisão, dormindo no sofá ou tentando conversar, não lembro direito, o que me lembro era de ver pela janela o céu cinzento, avisando que em breve viria uma chuva daquelas.
Já conhecendo o lugar onde moro, me adiantei e fui até a gaveta pegar a lanterna e algumas velas, pois sabia que se a chuva fosse forte com certeza acabaria a luz.
De fato, não demorou muito para que a chuva caísse como pedras sobre nosso telhado. A essa altura a televisão já havia perdido completamente o sinal, e as janelas já sacudiam loucas como se fossem explodir.
Rapidamente ficou noite. Entre um relâmpago e outro, minha mulher fazia uma prece, para que nada de ruim acontecesse.
Um clarão atravessou nossas janelas acompanhado de uma explosão tão próxima que podia jurar que era em nosso quintal. A energia elétrica se foi, nos deixando na mais completa escuridão. Tateamos a mesa da sala procurando os fósforos para acender a vela. Eu fui direto buscar a lanterna, mas tão logo a encontrei, a luz voltou.
Estranhamos, pois geralmente ela demorava muito para ser restabelecida. Só agradecemos e deixamos as velas e a lanterna pra lá.
Acabamos nos assustamos com uma pancada repentina na porta. Debatemos, pois raramente recebíamos visitas, ainda mais numa chuva como essa.
Mais uma pancada. Me pus a frente para ver quem poderia ser o infortunado a encarar esse temporal.
Olhei pelo “olho mágico" e me surpreendi ao ver que eram duas crianças._“Por Deus!”_ exclamei.
Destranquei a porta rapidamente e logo a abri. Para minha surpresa, a chuva já tinha parado, deixando pra trás apenas algumas persistentes gotas.
_ Por favor, nos deixe entrar, senhor._ disseram os jovens em uníssono, e assim o fiz.
Como disse, eram duas crianças, não, jovens, talvez já com uns 13 ou 14 anos. Não muito altos, mas também não muito baixos. Um garoto e uma garota, talvez irmãos, que aparentemente conseguiram se proteger muito bem da chuva, pois,  suas roupas estavam completamente secas, a não ser seus sapatos. Aliás, suas roupas eram estranhas, eu diria que era completamente deslocado com o que os jovens usam hoje em dia. Elas eram muito antigas.
Sempre de cabeça baixa, o garoto pediu para usar o telefone e assim o permitimos. A garota ficou sentada no sofá sendo cuidada pela minha mulher. Suas respostas eram curtas e sem muita expressão: “Estamos esperando nossos pais” , disse.
Recusaram água, recusaram comida, recusaram roupas mais quentes, só ficaram esperando, caladas, após o telefonema.
Foram alguns dos minutos mais desconfortáveis da minha vida, a sensação de que tinha alguma coisa errada era algo que martelava em minha cabeça com força.
Eis que cometi meu segundo erro, já que hoje percebo que o primeiro grande erro foi deixar esses jovens entrarem em minha casa. Voltando da cozinha, contornei o sofá por trás e fui perguntar algo ao garoto, acabei encostando em seu ombro para chamar sua atenção, algo que por algum motivo, nenhum deles tinha permitido ainda.
Quando encostei nele, senti uma repentina dormência tomando meu braço e foi se espalhando pelo meu corpo lentamente. O garoto finalmente levantou a cabeça e enfim pude ver seu rosto por inteiro.
Não havia percebido como eles eram extremamente brancos e o quanto pareciam ter expressões frias. O pouco que o garoto abriu a boca, consegui ver pequenos dentes pontudos, como os de uma fera, tenho certeza que consegui ouvir algo que pareceu um leve rosnado, mas sem dúvidas, o que mais me trouxe terror foram seus olhos.
Os olhos, sim, aqueles malditos olhos completamente negros, tomados por trevas que penetraram no interior da minha alma e a fizeram ser estraçalhada pelo mais profundo pavor. Olhar para aquele buraco negro infernal foi como ser tragado pela mais pura solidão. Meu corpo estava paralisado. Tentei desviar e arrisquei olhar para minha esposa, que estava sentada no outro sofá em frente a garota, paralisada, com a mesma cara de espanto que eu devia estar.
Aquele momento durou alguns segundos, mas sentimos como se tivessem sido horas. Só conseguimos nos mover novamente quando ouvimos alguém buzinando na frente da casa. As crianças voltaram a ficar de cabeça baixa e se levantaram. Corri para abrir a porta, esperando ver os pais daquelas coisas, mas antes de chegar a maçaneta, ouvi eles dizerem “Me desculpe senhor”, novamente os dois disseram juntos, como se tivessem ensaiado.
Abri a porta apenas para ver um carro preto, dos grandes, parado na rua. Dentro dele, vi dois homens corpulentos de óculos escuros e cara séria, aparentemente vestidos de terno e gravata. Não saíram do carro, não fizeram sinal, nada. Apenas me encararam, ligaram o carro e foram embora.
Voltei para dentro e percebi minha mulher chorando, ainda paralisada no sofá. Os jovens haviam sumido e ela não conseguia conceber uma explicação de como. Lá fora, ouvimos um novo relâmpago, a chuva voltou a cair.
Tentamos agir como se aquilo não tivesse passado de um sonho, mas a verdade é que nenhum de nós foi mais o mesmo. Minha mulher se desespera sempre que ouve um relâmpago ou que começa a chover, acreditando que eles voltarão. Eu, nunca mais consegui fechar normalmente a mão que tocou no ombro do menino, as pontas dos meus dedos ficaram escurecidas e nenhum médico conseguiu dar uma resposta precisa de o que pode ter acontecido. Sei que toda vez que fecho os olhos, a noite, para dormir, a imagem daquele rosto bizarro me vem à mente, principalmente a imagem daqueles olhos. Os malditos olhos negros.

Sussurro Dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora