E aqui estávamos, acampados em algum lugar na floresta ao redor de uma fogueira improvisada e longe o suficiente dos cadáveres para que a única coisa que denunciasse sua presença fosse o fedor de seus corpos em decomposição. Estaria mentindo se dissesse que dormi naquela noite, ainda mais com o inimigo dormindo na minha frente.
Confesso que adormeci em alguns ponto da manhã e quando acordei Albert tinha ido embora, por um momento me senti aliviado por não tê-lo mais por perto, afinal ele era o inimigo o povo boêmio morreu de fome por causa de seu governo e caso eu fosse pego com ele eu seria preso por traição, ele teria me feito um favor se eu não entrasse em pânico com a ideia de ficar sozinho e com a própria sorte numa floresta sem saber o caminho de volta, é certo que o golpe na cabeça pode ter sido a causa da minha desorientação. Mas o pânico durou pouco, Albert saiu do mato minutos depois com um sorriso no rosto, havia torniquetes improvisados com pedaços do próprio uniforme e trazia a boa notícia que tanto esperava: "Encontrei o rio, só falta caminhar um pouco".
Eu não o questionei, me levantei e o segui. Aquela parede de músculos abriu caminho entre as plantas com uma facilidade espantosa, eu mesmo teria dificuldade em atravessar esta floresta sozinho. Mas de qualquer maneira, caminhamos o suficiente para questionar o significado que ele dava à palavra "um pouco", caminhamos, creio eu, mais de um quilômetro até chegarmos ao rio. Pela primeira vez em horas eu vi água, a sede estava me matando e o sangue seco estava desgastando meus nervos. Antes de dizer qualquer coisa, corri para o rio e matei minha sede e lavei a lama e o sangue da minha cabeça, nunca fiquei tão feliz em ver um rio na minha vida, é claro que Albert tem seu crédito por isso, devo a ele por isso. Agora que eu disse que devo agradecê-lo por me ajudar desde a noite anterior por não ter me matado quando me encontrou, agora a questão é: ele me ajudou por necessidade ou por bondade? Se fosse a primeira hipótese, nada o deteria de me matar quando encontrássemos o caminho para nossos respectivos exércitos, mas se fosse a segunda, não conheci um homem mais gentil do que ele em toda a minha vida.
Devia ter aprendido a calar a boca, mas a vontade de falar era mais forte: "Por que você me ajudou? Sou um boêmio e seu inimigo, por que você fez tudo o que fez?", e aí veio a resposta.
Ele parou de beber água e olhou para mim, seria a primeira vez que nos olhamos na mesma altura? Provável. "Por quê? Você acha que eu quero um beijo de agradecimento ou que você me faça um bolo como se fosse minha esposa? Bem, a ideia não é ruim, mas eu fiz isso porque não sou um covarde que mata moribundos", primeiro eu corei de vergonha depois de raiva, eu não era um moribundo, era?
Eu teria reagido se ele não começasse a rir da minha cara. Seria estranho eu comentar que gostei de ouvir sua risada? Seria, mas não importa agora, sua risada é contagiante o suficiente para me fazer rir também, e lá estávamos nós, rindo do nada.
Paramos de rir mas ele ainda me olhava como se uma criança olha para seu brinquedo preferido, ainda conservava um sorriso sincero no rosto e seus olhos brilhavam como um farol, era uma realidade hipnotizante. Mas essa visão logo mudou e ele me fez uma observação que eu nunca esperaria para esta ocasião: "Você não me disse seu nome, eu disse o meu, mas você não me disse o seu." "Wilhelm", a resposta era simples mas bastava, mas aquela pergunta não bastaria para aquele sorriso bobo e brilho nos olhos.
Houve uma mudança no comportamento de Albert durante a noite, literalmente, ele está menos rude, acho que sou o culpado pela aspereza dele, mas isso não significa que ele não mudou, em um estalar de dedos seu rosto frio e sem emoção começou a sorrir e seus olhos sem vida começaram a brilhar, o que estava acontecendo com aquele búfalo que encontrei entre os cadáveres no campo de batalha ao amanhecer? O que aconteceu enquanto eu estava dormindo?
Deixei essa questão de lado quando partimos seguindo o leito do rio em direção ao sul, de onde viemos teoricamente. Esse seria o fim de nossa jornada juntos, chegaríamos ao ponto de choque dos exércitos e nos separaríamos para sempre, afinal nem era para nós ficarmos juntos, ele é o inimigo, seu povo causou dor e sofrimento em meus ancestrais e em gerações de boêmios, seria uma traição ao meu próprio povo ficar do lado de um bastardo austríaco. Caminhamos um bom tempo, o sol já começava a ocupar seu lugar no ponto mais alto do céu de forma que nossas sombras se projetavam contra o solo. Eu estava começando a ficar cansado de tanto andar, meus pés pediam misericórdia e descanso. Acho que já deveríamos ter chegado ao nosso destino, meu senso de espaço está totalmente fora da realidade desde o dia da batalha.
Mas, apesar do cansaço, concentrei minha atenção em uma coisa, ou alguém, Albert. A forma como caminha é a de um verdadeiro militar, sua forma ampla projetava uma sombra igualmente grande no chão, seus músculos bem trabalhados moviam-se de forma sincronizada como um relógio bem regulado, não aparentava nenhuma deformidade ou deficiência, apesar dos ferimentos no braço e na perna, estava intacto e em boa forma, tinha uma graça no rosto, um charme singular, talvez fosse só beleza mas com certeza se destacava, nada o impediria de ter uma noiva em Viena o esperando depois da guerra, para algum motivo esse último pensamento me afetou de maneiras que eu não esperava, mas por que importa tanto se ele está noivo ou não?
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Soldados também amam
RomantikSeria possivel um soldado descobrir uma paixão no meio de uma guerra entre Áustria e Boêmia, enquanto homens morrem por seus paises e a morte é iminente?