Extra - velhas memórias

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"Você tinha me pedido para descobrir como atravessar antes. Eu demorei, mas consegui." Meng Mo disse. Em pé na frente de uma enorme muralha intransponível, que parecia se estender infinitamente até o céu, um velho e um jovem conversavam com expressões solenes.

Luo Binghe não disse nada, encarando inexpressivamente aquela parede sólida diante dele. Vendo seu silêncio, Meng Mo continuou, "mas eu não o aconcelharia olhar lá. São memórias muito chocantes."

Nesse ponto Luo Binghe finalmente riu, exibindo seus belos dentes perolados. "Eu não disse ao Mestre Mo antes? Eu sou um viajante do tempo. Como eu poderia não saber o que há além dessa barreira?!"

O velho fez uma careta estranha, "garoto..."

"Você viu as memórias dele também, não viu?" Luo Binghe perguntou.

"Como vocês dois podem lembrar do que aconteceu lá e mesmo assim..." Meng Mo não completou. "Eu não entendo."

"O coração humano é muito complexo." Luo Binghe sorriu levianamente, vendo o velho sacudir as mãos enquanto se afastava resmungando aborrecidamente, "eu não entendo, eu não entendo!"

Luo Binghe ainda ficou no mesmo lugar, sem se mexer, por um longo tempo. Por mais certeza que ele tivesse do que encontraria do outro lado, uma vez que ele atravessasse e visse com seus próprios olhos, não existiria mais o benefício da dúvida. Ele ponderou por um longo tempo, mas ainda não foi capaz de mover-se para dar um espiada. Do jeito que as coisas eram agora, como ele seria capaz de ver a si mesmo novamente pisando naquele homem, o transformando em lama sob seus pés?!

Desmotivado, ele se voltou. Sentindo que a ignorância era uma benção a se preservar. Ele olhou em volta enquanto caminhava. O reino do sonhos de Shen Qingqiu era muito parecido com o que o seu costumava a ser. Um infinito mar de névoa acinzentada.

No passado, apesar de ter usado suas habilidades para perseguir e atormentar aquele homem, ele nunca a havia usado para vasculhar suas memórias. Ele nunca estivera interessado em seu passado. Mas uma vez estando aqui, ele se sentiu curioso.

Ele caminhou por não muito tempo quando a primeira lembrança piscou ao longe. Era os portões de uma pequena cidade, onde uma miríade de refugiados se amontoavam.

Aquelas pessoas emaciadas não possuíam rostos, mas ainda era possível perceber seus semblantes desanimados e abatidos. Luo Binghe caminhou entre elas por um longo tempo, até que a discussão de um pequeno grupo chegou aos seus ouvidos.

"Dez moedas de cobre?! O que dá pra comprar com essa miséria?" Um dos homens disse. Mesmo sem um rosto, sua fúria era evidente.

"Vocês deram uma moeda de prata pela criança daquela outra família. Por que a nossa vale tão pouco?" A mulher que falou também não tinha um rosto, seu tom injustiçado era muito fraco. Apenas quando ela disse isso foi que Luo Binghe percebeu a pequena criança agachada entre eles, rabiscando com seus dedos no chão, como se não ouvisse o que os adultos tramavam. Aquele garotinho, que era só pele e ossos, era o único ali com um rosto.

"Você quer comparar aquela criança gorda e saudável com esse pirralho desnutrido?! Magro desse jeito, quem garante que ele vai durar pelo menos até atravessar os portões da cidade?! Se eu não conseguir vendê-lo antes que ele morra, então eu terei prejuízo mesmo se pagasse apenas cinco moedas!" O comprador de escravos respondeu, fazendo o par de pais ficar inquieto.

"Tudo bem, tudo bem! Apenas nos dê as dez moedas! Ter uma boca a menos para alimentar já é bom o suficiente!" O homem pegou o dinheiro rapidamente e o guardou nos próprios bolsos, enquanto a mulher se abaixava para falar com a criança.

Ela a levantou do chão e limpou a poeira de suas roupas esfarrapadas, acariciou seus cabelos bagunçados e disse ternamente, "não se preocupe querido, quando você estiver na cidade e for comprado por uma boa família, você vai ter uma vida boa pra viver."

A criança não demonstrou nenhum sinal de tristeza ou medo, ele apenas olhou apaticamente para a face borrada da mulher. Aquele era, sem dúvidas, Shen Qingqiu, Luo Binghe podia dizer com apenas um olhar.

Luo Binghe o viu ser amarrado pelo comerciante de escravos e ser puxado para a cidade junto com outras crianças. Aquela cena se desmanchou depois que ele atravessou os portões, dando lugar a próxima.

A cidade agitada estava cheia de pessoas sem rosto, gritando e negociando. Seria uma visão animada se não parecesse bizarro. Luo Binghe achou aquela atmosfera um tanto familiar, mas foi só depois de ver um grupo de crianças maltrapilhas em um beco, xingando e amaldiçoando enquanto tratavam com chutes e pontapés uma pequena pilha de trapos, foi que ele lembrou. Não havia sido algo exatamente assim que eles tinham assistido em seu reino dos sonhos na última vez?

A criança espancada protegia sua cabeça com os pequenos braços, seus olhos ferozes brilhando em meio a sujeira que cobria seu rosto. Luo Binghe sentiu que finalmente tinha entendido as lágrimas que Shen Qingqiu derramara naquele dia. Ele estava atordoado e certamente pensou que aquelas eram suas próprias lembranças.

Levando em conta a personalidade distorcida de Shen Qingqiu, Luo Binghe podia supor que ele não havia crescido em um ambiente muito saudável. Mas apenas pensar sobre isso era totalmente diferente de ver tudo com os próprios olhos. Mesmo ele, que não tinha tido uma vida muito melhor que aquela, não aguentou assistir até o final.

Achando que já tinha bisbilhotado o suficiente, ele deu meia volta e saiu de suas memórias. Ainda não tendo deixado seu reino dos sonhos, ele avistou a consciência espiritual de Shen Qingqiu. Sentado numa cadeira em um jardim idílico, ele se reclinava preguiçosamente contra o encosto de vime, parecendo tranquilo e sonolento. Ao sentir sua presença, ele abriu os olhos de fênix com um movimento suave de seus cílios densos, como o bater de asas de uma borboleta.

Ele sorriu, iluminando seu belo rosto e chamou. "Venha." Ele apontou para a beirada da cadeira. Luo Binghe o obedeceu e sentou-se. Shen Qingqiu esfregou o topo de sua cabeça até seus cabelos se tornarem uma bagunça. "Binghe, levante-se. Eu vou ensiná-lo alguns movimentos de esgrima."

Luo Binghe ergueu as sobrancelhas, surpreso e perguntou. "Por quê?"

"Você disse antes, não lembra?" Ele perguntou sem mudar de expressão. "Que se ressintia de mim por eu nunca ter prestado atenção em você."

Luo Binghe baixou os cílios, pousando a mão na de Shen Qingqiu sobre sua cabeça e a puxou para beijar-lhe os dedos delgados. "Eu disse isso?"

"É culpa deste mestre, que nunca agiu como um. Eu vou orientá-lo bem desta vez, então você não me odiará mais no futuro. Tudo será diferente." Ele afirmou. Seus olhos sorridentes estavam cheios de luz. Luo Binghe se perdeu neles por um momento, sentindo seu coração suavizar, ao mesmo tempo que pulsava forte e implacavelmente.

Ele sorriu também e respondeu, "Este discípulo aguardará ansioso pelos ensinamentos do Shizun."

       

Aonde Foram Os Vilões? - BingjiuOnde histórias criam vida. Descubra agora