Luo Binghe está morto - prólogo

1.9K 256 89
                                    

(aviso: violência, suicídio)

________

Ele estava morto.

Shen Qingqiu tinha finalmente deixado aquele mundo para sempre. Luo Binghe estava feliz. Tão feliz, que ordenou que preparassem um banquete que durasse três dias e três noites. E por três dias e três noites ele festejou. Embriagou-se com os melhores vinhos e dançou com as esposas mais belas.

Mas depois desses três dias, quando o estupor ébrio se foi, ele acordou. Ele acordou em sua cama luxuosa, três ou quatro mulheres que ele havia visto apenas uma ou duas vezes após entrarem para seu harém, dormiam ao seu redor. Ele levantou sem acordá-las e andou a ermo por seu palácio.

O chão gelado sob seus pés descalços parecia incômodo, mas não tanto quanto o sentimento que abarcava seu coração. Todas as manhãs ele costumava a fazer aquele trajeto. Chovesse ou fizesse sol, ele percorreria aquele mesmo caminho até a masmorra escura e fria. E antes que pudesse perceber, seus passos ainda sem equilíbrio e sua mente distraída o tinham levado de volta àquele lugar.

Mas estava vazio.

O homem meio-morto que costumava estar ali já não existia mais neste mundo, Luo Binghe o havia mandado para o inferno com suas próprias mãos. Ele devia estar feliz, aquele era seu maior inimigo, o último inimigo. O único que não disse uma palavra de arrependimento até ter a língua decepada, que não mostrou um olhar de súplica até ter os olhos arrancados das órbitas. Aquele homem que ainda era alto como uma árvore em suas memórias mais dolorosas e que não deixou de ter uma presença arrebatadora mesmo depois de ter sido cortado como lenha, não estava mais ali e nunca estaria novamente. Luo Binghe sentiu as pernas enfraquecerem e ele caiu. Sentado sozinho no chão sujo, ele de repente sentiu um enorme sentimento de vazio como se um abismo estivesse se abrindo dentro dele. De repente, Luo Binghe já não se sentia tão feliz. E nos três dias e três noites que se seguiram, ele se trancou naquele lugar, bebendo do vinho mais amargo, sem música e sem dança.

Todos na propriedade estavam apreensivos e preocupados, com medo de que a morte daquela pessoa o tivesse levado a insanidade, mas ainda assim ninguém ousou procurá-lo. Só após três dias, Luo Binghe finalmente saiu. Todos respiraram aliviados quando o viram voltar a agir como de costume, como se nada tivesse acontecido.

Ele comeu, cuidou dos assuntos de estado, sentou-se no jardim e tomou chá em silêncio. Estava tudo aparentemente normal, exceto por Xin Mo em sua cintura. Ela vibrava constantemente e uma aura negra vazava dela.

Luo Binghe estava sofrendo um contra-ataque da espada.

Em todos esses anos que passara com Xin Mo, essa era a primeira vez que a espada saía de seu controle. Ele notou a mudança enquanto estava na masmorra e por isso se apressou em sair de lá. Ele fraquejou por apenas alguns dias e a espada já queria deixar de reconhecê-lo como mestre.

Nos dias que se seguiram, mesmo tendo retomado sua rotina, Xin Mo continuava agitada. Para acalmá-la, ele se retirou para um cultivo recluso e enquanto meditava, um misterioso portal se abriu¹. No mundo além do portal, havia um 'outro ele' e havia um outro Shen Qingqiu.

Um Shen Qingqiu vivo e bem, um Shen Qingqiu que não era seu inimigo. Luo Binghe já havia sonhado com aquele homem há não muito tempo², ele não era o mesmo Shen Qingqiu que conhecia, o Shen Qingqiu que só tinha ódio e desprezo nos olhos.

No começo, Luo Binghe sentiu confusão e desconfiança, depois euforia e felicidade e por fim amargura e ciúmes. Ele não entendia. Ele e o Luo Binghe daquele mundo eram o mesmo, mas por que eles receberam coisas diferentes? Por que aquele Shen Qingqiu o olhava tão cheio de afeto enquanto o do seu mundo só lhe mostrara a face do desprezo?

Depois de voltar para a sua própria dimensão, Luo Binghe finalmente enlouqueceu. Ele passou um mês inteiro trancado tentando abrir o portal novamente sem descanso. Algumas esposas tentaram convencê-lo a sair, mas ele matou todos que ousaram se aproximar.

Xin Mo se tornou ainda mais rebelde. Ele sempre achara que a havia dominado, mas ele acabou percebendo que quem era o dominado era ele próprio. Ela cultivava seu ódio e se alimentava dele. Ela era obediente enquanto estava saciada, mas no momento em que seus sentimentos vacilaram, ela passou a consumir sua alma em vez disso.

Seu corpo, mesmo sendo da mais nobre linhagem demoníaca, não era capaz de suportar a energia remanescente e começou a apodrecer. Ele estava morrendo e ainda assim ele não conseguiu nem mesmo um vislumbre daquele portal. Então era isso? Esse era seu destino patético? Ele finalmente desistiu. O grande rei demoníaco não podia conseguir tudo que queria afinal e se tornou nada além de um moribundo coberto de feridas podres.

Ele caminhou a ermo por seu palácio gigantesco e luxuoso. Ele já havia sido o mais pobre entre os pobres, lutando por comida com os cães de rua, mas hoje ele era o mais rico e nobre entre os homens. Ele tinha saído do abismo e chegado ao topo do mundo, ele tinha alcançado a vida que qualquer um poderia querer, mas ainda era tão infeliz.

"eu ouvi dizer que tem um exército caminhando para cá"

"A notícia que o mestre enlouqueceu está por toda parte"

"estão todos fugindo"

"eles não vão nos poupar, é melhor a gente ir embora também!"

Luo Binghe ouviu uma reunião de servos cochichando enquanto se aproximava do salão principal. Ele pesou os passos, fazendo-os ressoar alto e ao notá-lo, o grupo se dispersou imediatamente temendo sua fúria.

Ele ignorou a mesa posta com as mais finas iguarias e pegou apenas a garrafa de vinho. Ele tomou um gole grande, mas só pôde sentir um gosto amargo, como se até sua língua tivesse apodrecido. Ele continuou arrastando seu corpo arruinado até o arsenal. Lá era onde estavam todas as armas que ele conquistara ou roubara de seus inimigos e lá também estava Xiu Ya.

A lâmina branca estava empoeirada, seu esplendor e brilho desvanecidos. Luo Binghe olhou em transe para aquela espada por um longo tempo, lembrando do dia em que vira Shen Qingqiu pela primeira vez, escolhendo novos discípulos. Sua aura etérea e divina o fazia parecer um ser transcendente. Tão lindo! Era a primeira vez que Luo Binghe via alguém tão bonito com seus próprios olhos. Naquela época, ele realmente acreditou estar diante de um deus. Mas quão grande foi sua decepção ao perceber que aquele ser tão esplendoroso por fora, era totalmente podre por dentro.

Foi como escolher a fruta maior e mais brilhante e achar um inseto na primeira mordida. Ele odiou Shen Qingqiu por isso, odiou ter sido enganado. Mas de todas as lembranças ruins do que ele sofreu, a primeira coisa que voltou a sua mente foi a única vez que ele viu Shen Qingqiu sorrir.

Shen Qingqiu estava ensinando alguns movimentos de espada e quando Ming Fan conseguiu completar a sequência quase na vigésima tentativa, ele deu dois tapinhas na cabeça do garoto, sorriu e disse, "Muito bem!" Aquelas duas palavras e aquele olhar orgulhoso foram as únicas coisas que Luo Binghe desejou receber de seu mestre, mas nem mesmo uma fração disso ele foi capaz de obter.

Num rompente de raiva, ele jogou a garrafa contra Xin Ya. O barulho do metal colidindo com o solo duro encheu o cômodo silencioso junto do som da porcelana se espatifando. Luo Binghe recolheu a espada, sua lâmina lavada pelo álcool coruscava fracamente. Ele a apontou para si mesmo, apertando o extremo afiado contra o próprio peito. Sangue preto vazou, a dor lancinante da carne sendo cortada fez seus membros fracos tremerem.

"Você... você destruiu a minha vida... você me transformou num monstro..." ele cuspiu um bocado de sangue, o gosto podre impregnando seu paladar. Ele caiu de joelhos, mas não parou de empurrar a lâmina, atravessando milímetro a milímetro o próprio corpo. "Eu não vou... eu não vou te deixar... eu vou te encontrar... nem que seja... no inferno..."

Seu coração transposto pela espada de seu mestre finalmente parou de bater e seu corpo jazeu no chão frio de seu palácio. Lamentável e solitário tanto quanto o começo de sua vida, foi também o final dela.

Luo Binghe finalmente estava morto.

________

notas:

1- referencia ao primeiro extra

2- referencia ao capitulo 71 da novel

       

Aonde Foram Os Vilões? - BingjiuOnde histórias criam vida. Descubra agora