Prólogo

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A terra estava escura, calma e silenciosa como águas paradas. Havia uma suave e gelada brisa que fazia as folhas das árvores farfalharem de forma tranquila e quase inaudível. Bem distante, um lobo uivava em intervalos longos e era possível ouvir sons de morcegos cortando o céu com suas pequenas asas ligeiras. O riacho que corria em direção às montanhas cintilava com o brilho da lua cheia, que marcava o início de mais um período de tempo nos Quinze Reinos. Quantos dias haviam se passado até ali? Dois, três? Talvez uma quinzena.   não saberia dizer. Caminhou durante a maior parte do dia e da noite, chegando bem mais longe do que esperava.

Havia passado pela  algum tempo antes. Lá, roubara alguns pães, um pequeno jarro de vinho e apanhara maçãs num pomar distante. Quando se deram conta do ocorrido, os habitantes correram atrás dele, perseguindo-o. Christie pôs-se rapidamente em retirada, saltou por cima de uma carroça quebrada, desviou de cavalos e bois que pastavam à sombra das árvores e tropeçou numa pedra que lhe fugiu da vista, mas não chegou a cair. Em vez disso, correu o mais rápido que pôde. Correu, correu, correu e correu até que seus pulmões estivessem a ponto de explodir.

Permitiu-se olhar para trás quando já estava longe. Os homens e mulheres que se puseram em marcha atrás dele já não estavam mais lá. Talvez tivessem se cansado, assim como ele. Encostou-se num paredão de rocha e inspirou profundamente, sua língua pendendo da boca como um cachorro qualquer. Estava ofegante, suado e mal se aguentava em pé depois da correria, mas conseguira escapar. Aquilo lhe fez sorrir timidamente quando recuperou o fôlego minutos depois.

Teve sede. Sentou-se no chão após avaliar o terreno e seu entorno. Às vezes, ursos, veados e até mesmo javalis se escondiam atrás das árvores, espreitando com os olhos malignos e famintos em busca de uma boa presa. Ora, Christie não era um homem gordo – mesmo porque, se fosse, provavelmente seria apanhado no momento em que tentasse surrupiar o primeiro pão – ainda assim, acreditava que seria o bastante para enganar o estômago de uma fera. Olhou em volta. Não havia ninguém.

Retirou da bolsa o jarro de vinho. Carregava consigo uma pequena taça, que recebera de presente do pai havia muitos anos. Que as deusas o tenham, pensou. Era um homem de fé, apesar de tudo. Frequentava os templos com sua família quando pequeno e a mãe o havia ensinado a rezar. Que a virgem me mantenha puro, que a mãe me proteja com seu manto, que a bruxa me mostre os segredos que estão ocultos. Foi a primeira oração que aprendeu.

Despejou um pouco do rubro líquido na taça de prata já levemente manchada pelo tempo e olhou para ela por um instante. O sol forte parecia refletir seu rosto de maneira muito disforme e engraçada ali. Levou a taça aos lábios e provou o vinho. Quando roubara o jarro, não sabia bem de qual vinho se tratava. Pensou ser um perolado das Ilhas, mas depois acreditou que pessoas humildes como os residentes de Vila dos Escudos não teriam condição de obter um vinho tão caro e agradável ao paladar. Podia ser um tinto barato, desses que são vendidos em pequenas tavernas, nada comparáveis às suntuosas bebidas consumidas pelos lordes ou mesmo pelo rei em seus castelos.

Quando o líquido lhe tocou a língua, saboreou-o. Era encorpado, isso não negava, mas ligeiramente mais amargo do que acreditava ser. Desceu por sua garganta como uma adaga pequenina, cortando o que via pela frente, porém ele se habituou ao sabor quando chegou ao fim da taça. Permitiu-se beber um pouco mais, não porque quisesse se embriagar, afinal ainda tinha o resto do dia de viagem e não desconfiava que seus perseguidores pudessem reaparecer a qualquer hora com sede de sangue. Contudo, eram tão raros os pequenos momentos em que ficava sozinho com a natureza, que era quase impossível não os aproveitar e guardá-los no relicário mental de suas memórias.

Saciado brevemente pela bebida, pôs-se de pé com cuidado e tampou o jarro de vinho, colocando-o de volta na bolsa de couro que carregava trespassada pelo corpo. Precisava encontrar água e seguir viagem. Havia um pequeno cantil na bolsa que usava para se abastecer, mas estava vazio desde antes de chegar à vila.

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