Uma palavra que sempre definiu a vida de Xande era “confusão”. Desde que se lembrava, da mais tenra infância até os dias atuais, tudo sempre foi muito confuso e bagunçado. Não precisava se esforçar muito para saber que era diferente das outras crianças, ou que não viam o mundo da mesma forma, não.
E, ainda mais que as visões diferentes, tinham sentidos diferentes.
Principalmente audições.
A voz de sua mãe era azulada, macia, confortável como poucas no mundo. Seu pai também tinha esse conforto, mas era muito mais próximo da sensação de um marrom profundo, e ambos oscilavam na maneira em que vibravam em sua cabeça conforme os humores de cada um. Suas músicas favoritas eram confortáveis, traziam uma escala equilibrada de amarelos, vermelhos, laranjas, verdes, todos passeando com as notas que enchiam seu corpo.
Mas nem tudo era bom em sua casa. O som de um copo indo contra o chão e se estilhaçando era um branco cegante que lhe doía. Panelas sendo raspadas por talheres lhe causavam calafrios, misturando cores acesas e gritantes com o sabor metálico. As vozes de seus pais discutindo entre si, ou brigando com Xande, lhe doíam fisicamente, pairando sobre seu ser como uma nuvem carregada e pronta para descarregar a eletricidade de uma vez.
O mundo também tinha muito daquela coisa, sons que vibravam em seu interior de outra forma. Ouvir o som de uma ambulância na rua lhe trazia o frio de um hospital ao corpo, o branco e o verde apagado das paredes e das roupas dos enfermeiros vindo à sua mente. Da mesma forma, ouvir um caminhão de lixo e sentir o cheiro trazia o gosto amargo e podre à garganta, levando seu estômago a se revirar. O aroma dos cremes de cabelo que as professoras usavam provocavam a sensação grudenta em seus dedos, o sabor químico que amarrava sua boca o levando a torcer o nariz.
Porém nada era pior do que os gritos das crianças e o alarme da escola.
Porra, aquilo era insuportável. O sino que ia fundo em sua cabeça, vibrando e badalando em seu interior, martelando sem piedade se misturava aos sons incisivos e afiados das vozes infantis que o perfuravam, atravessavam seu corpo de uma vez, ininterruptamente. As cores explodiam, acesas, fortes, misturadas, sozinhas; o cheiro da poeira que se erguia com os pés dos alunos que corriam de um lado para o outro grudava em sua garganta, trazendo o gosto da terra e da sujeira.
Sinceramente, só queria encontrar um lugar onde tudo aquilo não acontecia, ou que somente tivesse sensações boas e confortáveis. Invejava os colegas que não eram atormentados por isso, que podiam frequentar todos os espaços sem a constante ansiedade da incerteza de ter ou não alguma sensação desencadeada. Sentia-se sozinho por não conhecer ninguém que parecia compreendê-lo, ou sequer respeitá-lo. Odiava do fundo do coração ter objetos colocados à sua frente para que dissesse “que gosto ou cor tinha”, e mais ainda quando apontavam para alguma pessoa e faziam aquele tipo de pergunta.
Xande só queria poder ter uma vida de paz, onde o mundo e as pessoas não o agredissem daquela forma.
Mas, ei! Nem tudo era ruim, nem todas as pessoas eram assim! Guizo, Dara, Chico, Lírio e Morato o respeitavam, jamais lhe fizeram aquele tipo de questão, ou o lançaram em uma situação qualquer só para saber qual era sua reação. A única vez que conversaram sobre a confusão de suas sensações foi após a luta contra um alheio, o qual trouxera desconforto extremo a Xande com seus berros azedos e amarelados.
Quem diria que, de um momento que achava que seria julgado e tido como maluco (como em tantas outras vezes), viria o apoio e uma das melhores ideias que nunca imaginou ouvir na vida, hã?
Pois é! Contra tudo o que imaginou, seus amigos o acolheram, não o olharam torto como todos fizeram antes! Tudo bem, Lírio ficou mais interessado que a maioria, fazendo centenas de perguntas, entretanto não era com o olhar de julgamento ou teste, e sim a genuína curiosidade de alguém que queria aprender e entender o que Xande passava.
Foi a primeira vez que se sentiu querido e aceito. Foi a primeira vez que alguém realmente se importou e o ouviu.
Naquela noite, saiu dali com um par de fones de ouvido e uma máscara, numa ideia de Guizo e Dara para tentar conter a bagunça que os sons e os cheiros lhe causavam.
E funcionou! Por incrível que pareça, funcionou! As músicas que lhe traziam conforto barravam os sons que não eram bem-vindos, evitando que gritos, estilhaços, raspas, tudo o que tanto o confundia e causava mal. Ao invés da explosão de cores e respostas do corpo constantes, tinha a atmosfera conhecida e adorada das canções que tanto gostava. A máscara não tinha tanto sucesso, porém ajudou muito a impedir que os cheiros ruins ou mais fortes lhe trouxessem sabores indesejados, principalmente os malditos caminhões de lixo e cremes de cabelo.
Infelizmente não eram todas as pessoas que entendiam, e na verdade era a minoria. Perdeu as contas de quantos olhares tortos recebeu, tido como mal educado, arrogante, egocêntrico que queria se afastar de tudo e ficar sozinho por se sentir melhor que os outros. Não foram poucos os dias em que seus pais brigaram por estar de fones de ouvido na escola, principalmente quando os colocava durante as aulas. Quem saberia dizer quantas vezes chorou por ter acumulado em sua cabeça milhares de cores, sensações dolorosas em seu corpo, sabores que não queria sentir, cheiros que não estavam ali, mas que sentia?
Ao menos agora tinha os Cinco, a família com a qual não partilhava sangue, pessoas que o aceitaram do jeitinho que era, e o respeitavam. Era maravilhoso saber que não seria obrigado a tirar os fones e a máscara quando estava com eles, que eles o cutucariam para chamá-lo ao invés de gritar e brigar, que não lhe dariam objetos e perguntariam sobre as sensações que causavam (até porque não era assim que funcionava). Não foi fácil ficar sozinho por tantos anos, entretanto foi contemplado com cinco amigos que o receberam, o amaram de verdade, fazendo valer o tempo que foi chacota de quem não fazia o mínimo esforço para entendê-lo.
Bom… Ter aquilo, seja lá qual fosse o nome, não era fácil. Sua vida era uma completa bagunça, numa mistura absurda dos sentidos que teoricamente deveriam estar separados, mas tudo bem. Não era como se conhecesse outro jeito de viver e sentir o mundo, no fim das contas, Xande nasceu assim, e morreria assim.
Mas definitivamente era muito melhor viver estando com quem o respeitava e amava. Poderia até sentir alguns gostos e ter algumas cores piscando em sua mente, porém ter a certeza de que estava num ambiente seguro para se proteger como achava correto, e poder contar com os amigos para ajudá-lo fazia valer os que eram incômodos. Não era perfeito, nunca seria, entretanto estava ótimo assim.
E torcia para que durasse muito, de preferência até o fim de sua vida.
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Sobre Meus Sentidos Bagunçados
ספרות חובביםA sinestesia de um personagem muito querido do universo de Ordem escrita do ponto de vista de uma pessoa sinestésica