16- Toda estória tem um fim, não é ?

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Afinal, o trabalho dos lupis foi inútil.
Um dia acordaram com uma notícia horrível. A água lilás parou de sair dos dois furos. Nem uma gota.
Foram gastando a água dos dez tanques, esquento furavam todo o Morro da Poesia, à procura de novas fontes. Até que venderam a água do último tanque. E não encontraram nenhuma fonte nova, embora tivessem tornado o Morro uma paisagem lunar, cheio de crateras. A montanha de repente ficara seca de água lilás. Só os tanques vazios e um vago perfume que neles ficou mostrava o que, um dia, tinha existido ali.
A fome apertou. Os lupis já não sabiam subir às árvores para colher a fruta que estava lá em cima. E as fogueiras da base da montanha se apagarem, pois já não havia água lilás para as fazer arder sempre.
Os leões e as onças, furiosos por não terem mais água, agora que tinham feito grandes progressos na descoberta de aplicações miraculosas, avançaram pela montanha, porque pensavam aquilo era um truque dos lupis para aumentar os preços. O cágado, avisado da calamidade acontecida na montanha, teve de intervir com os elefantes:
- Ninguém faz mal aos nossos amigos em desgraça. Ficou combinado que ninguém ia invadir a montanha. Com água lilás ou sem água lilás.
Os carnívoros acabaram por recuar e não fizeram mal aos lupis. Mas como estes já não tinham nada para comer e na montanha só havia fruta em cima das árvores, agora inacessíveis, tiveram de se espalhar pela planície. Os dois amigos ainda tentaram manter os cambutas na montanha.
- Fiquem, que nós atiramos as frutas para baixo. Até reaprenderem a subir às árvores.
Mas os outros, dobrados pela desgraça coletiva, nem os ouviram. Ou foi vergonha ? Ou por não quererem ficar dependentes dos dois que eles no fundo ajudaram a exilar ? Não se sabe. O certo é que foram com os lupões e os jacalupis para a planície.
Para comer, os lupis alugaram-se aos carnívoros e grandes herbívoros. O jacalupi-capitão passou a servir de tambor nas feiras, porque tinham uma grande bunda onde as onças batiam, marcando o ritmo das danças. Outros serviam de palhaços, com as caudas de ossos a arrastar. O lupi-sábio e os seus adjuntos ficaram escravos das cobras, inventando coisas para elas. O lupi-comerciante era escravo dos hipopótamos, para fazer trocas com os jacarés, os quais o mordiam quando não gostavam do negócio.
Todos os outros se alugaram para trabalhos que os bichos da planície recusavam fazer. E deixaram de lupilar.
O lupi-pensador e o lupi-poeta continuaram na montanha, comendo as frutas das árvores. Às vezes recebiam a visita do cágado e lupilavam mansamente com as notícias que ele trazia. Tinha magoar uma vida livre pela montanha, como nos velhos tempos, mas tinham saudades dos outros lupis. Tinham sobretudo pena deles, escravos de si próprios.
Um dia, sentados num rochedo perto do Morro da Poesia, o lupi-poeta disse:
- Olha, ali embaixo cheira muito a água lilás. Deve haver.
O lupi-pensador concordou com a cabeça. Lupilou:
- Também já notei. Não lhe mexas. Nunca. Deixa-a estar aí embaixo. A nós basta vir aqui de vez em quando cheirar este perfume delicioso, lupi-lupi-lupi.
- Tens razão, é melhor que ela durma aí embaixo, lupi-lupi-lupi. É cedo demais para a fazer sair.
E continuaram a lupilar, todos contentes, com a alegria que dá aspirar o perfume da água lilás.
Sons que acariciavam os fetos e as flores da nossa montanha, talvez aqui perto de nós, hoje.
O lupi-pensador olhou a primeira carraça que se desenvolvia no braço esquerdo, com pena de a tirar. Disse:
- Lupi-poeta, tens que contar tudo isso que passou. Para que os lupis não se esqueçam dos seus erros.
O lupi-poeta fez então muitos poemas. Contavam a estória dos lupis e da água lilás. Também da desgraça que se bateu sobre eles e o seu destino.
Foram talvez esses poemas que chegaram ao conhecimento dos avós dos nossos avós, quando eles compreendiam a linguagem dos lupis. E nós contaram à noite, na fogueira, para transmitirmos às gerações vindouras. Aprenderão elas com a estória ?

A Montanha da Água Lilás Onde histórias criam vida. Descubra agora