vislumbre de nós

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Ele não dormiu naquela noite. Primeiro porquê Maria o encheu de perguntas sobre o porquê da vó não ter ficado, como ele poderia responder a verdade sem desmanchar sua imagem de herói? A vida era muito menos complicada na cabeça das crianças e ele gostaria de manter assim.

Heloísa rolou de um lado para o outro até que desistiu e foi estudar alguns casos pendentes. A noite carioca a convidava a abrir uma cerveja gelada, mas a ideia de beber sozinha era deprimente.

Ela bebeu muito sozinhas nos primeiros meses de divórcio.

Todo mundo sempre falava como Stenio devia ter ficado arrasado com a separação, mas nunca Heloísa. "Ela é durona", "ela que deve ter colocado ele para fora", "Helô sofrendo por homem? Nunca". Mas esqueciam que ela era apenas uma mulher apaixonada pelo marido vendo o mesmo sair pela porta pela segunda vez na sua vida.

Nos primeiros dias, ela aproveitou ainda estar de licença da delegacia para esperar. E ela esperou muito: perto do telefone, perto da porta, deitada na cama dos dois. Stenio não ligou, não mandou presentes, ele não procurou.

Ela voltou ao trabalho com olheiras que gritavam enquanto Stenio continuava em silêncio.

Quando os papéis chegaram através de Laís, Heloísa perguntou se aquilo estava mesmo acontecendo. Quando ela assinou, sem nem ao menos tentar outra ação, completamente movida pela raiva, ela sentiu aquele arrependimento de criança que faz algo sem pensar. Trabalhou em silêncio por três dias. 

Depois de dois meses, ela desistiu. Porque ela sabia que Stenio tinha desistido muito antes dela. Porque ela mudou algo dentro do advogado que parecia não ter mais volta. O tempo passou pelos dois. Tudo isso que acontecia entre eles, as duras palavras, tinha a ver com o tempo, quando você olhava para uma versão sua que você não reconhece mais. 

— Pois eu não acredito que a senhora foi lá na porta de Dotô Stenio para fazer bagunça. — Creusa falou, sentando junto com sua xícara de café, ainda em seu pijama. 

A manhã era preguiçosa para Helô, mesmo sendo uma manhã de trabalho. Seu corpo talvez ainda sentia os duros golpes da palavra do ex-marido. 

— Eu não fiz bagunça, Maria não ouviu nada. 

— Melhor assim, coitada da bichinha se ela tivesse escutado vocês dois. 

Heloísa deixou o olhar se perder na mesa enquanto sua mente se perdia sozinha. Creusa percebeu como a mulher ficou mexida com a atitude de Stenio. Helô sempre vencia, ele sempre cedia, era uma briga de gato e rato onde os personagens eram bem definidos. Dessa vez não, aqui Stenio se impunha como outro animal, um cão de rua quase, muito maltratado e desconfiado de todos. 

— A senhora ficou triste com o jeito que ele falou? — Creusa perguntou. 

— Não tem como não ficar, não é? — a delegada respondeu com honestidade. — Eu só queria trazer a Maria, eu... 

— A senhora tem que ver como fala as coisas, Dona Helô. Ele não é seu inimigo não, é o homem que te ama. 

Helô soltou aquelas risadas sem graça, abafadas pela angustia de não conseguir mais acreditar nessas palavras da Creusa. 

— Não ama mais, Creusita. Não mais. — com isso ela se levantou, sem apetite para continuar desfrutando do bolo que a mais velha tinha feito ontem. 

O dia na delegacia foi puxado pela manhã. Só conseguiu parar um pouco no começo da tarde, e só então checou o telefone. Seria tolo dizer que ela esperava ao menos um mensagem dele? Ao menos para ele lhe dar a abertura para falar que ela sentia muito por ontem? Ela não sabia tomar o primeiro passo das coisas, a rédea dos próprios sentimentos. Precisava de um empurrãozinho aqui. Nem Drika foi capaz de lhe mandar um mísero 'oi', e ela deduziu que Stenio decidiu não contar a cena ridícula de ontem. No Instagram, sua filha postava uma foto bonita com o marido, e ela sorriu orgulhosa de pensar que ao menos ela teve sorte no amor, que apesar de tudo, ela soube escolher muito bem e não se deixou levar pelo desastre dos pais. 

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