Capítulo quatro: Penhasco

3 1 0
                                    

War Of Hearts - Ruelle

"Estou convencida de que eu sinto algo" foram as primeiras palavras que Mily escreveu naquela noite, nas notas do celular, pouco antes de afundar na cama.

Já era um hábito seu escrever notas sobre o que estava sentindo, geralmente antes de dormir. Entretanto, naquela noite, foram várias notas curtas e inacabadas, como se fossem canções em um disco arranhado.

"Todas elas são muito melhores do que eu posso ser, por que você olharia para mim?"

O cursor piscava na tela, enquanto uma lágrima fugaz escapava de seus olhos, deixando um rastro úmido em sua bochecha.

Mily encarou a tela por longos segundos, sentindo seu rosto queimar.
Estava escuro o suficiente para que ninguém notasse suas bochechas vermelhas, e silencioso o suficiente para que ela evitasse emitir sons. Ela não queria ser ouvida, nem vista, ela não queria ser ela naquele momento.
Havia muito tempo que não sentia aquilo, a angustiante ideia de não ser o bastante, de simplesmente não ser.

Soluçava, enquanto sentia seu corpo arder em chamas. Luzes rosadas saíam de seu peito e se dispersavam no ar iluminando o quarto escuro. Seus olhos castanhos adotaram uma coloração rosa petúnia, brilhando como duas estrelas.

Ela uniu as mãos e pousou sobre o peito, em uma tentativa falha de segurar todo o sentimento que seu coração expelia em forma de luz.

- Mano... - Sussurrou ofegante, encarando as próprias mãos iluminadas por tons de rosa choque.

- O que... Que porra é essa? - Encarou o teto, completamente iluminado.

- Eu tô... Meu Deus... - Fitou as próprias mãos outra vez, com os lábios entreabertos.

Uma faísca que flutuava próximo à sua cama começou a cair, como uma pequena estrela cadente. Ela estendeu uma das mãos para pegá-la e, ao toque, ela e todas as luzes desapareceram diante dos seus olhos.

A garota sentou-se na cama e olhou ao redor, tudo permanecia intacto: guarda-roupas fechado, livros didáticos sobre a escrivaninha, pantufas ao lado da cama, despertador programado para as 07h30 e seu gato, Theo, estirado sobre o edredom.

Não havia nada fora dos conformes, e dentro de si, não havia sobrado nada além de um vazio.
Ela encolheu o pequeno corpo debaixo do edredom, abraçando as próprias pernas e apertando os olhos, como se fosse capaz de dissolver sua solidão abraçando a si mesma.

Naquela noite, chorou como há muito tempo não chorava, sentindo a cicatriz de sete anos antes, ser rasgada outra vez.
Era doloroso, sufocante.

Somado a tudo o que se passava, lembrou-se da falta que fazia receber um abraço, lembrou-se de sua grande amiga que estava a pelo menos cinco mil quilômetros de distância, e de como sentia-se fora de sintonia.

Desde que as aulas haviam começado, Mily não sabia mais o que era acolhedor. Havia aceitado amizades medíocres para não sentir que estava só, embora soubesse que estava. E havia aberto mão do que lhe fazia bem, para agradar algumas pessoas.

Havia aberto mão de si.
Já não era ela, era outra pessoa.
Doía, desta vez, ainda mais do que da primeira, há sete anos, quando havia amado com corpo e alma, sem receber nada em troca - apenas palavras rasas e desdém.

Suspirou.
Seu corpo tremia como se estivesse sendo alvo de uma descarga elétrica. E ela não sabia, tampouco eu, se era por conta da ansiedade ou um mero efeito colateral do amor.

No dia seguinte, quando acordou, com profundas e escuras olheiras debaixo dos olhos, que contrastavam com sua pele cor de marfim, seu primeiro pensamento - e bastante inconveniente - foi Lucas.

O sorriso dele. Ela ainda não havia esquecido o quanto era encantador.
"Sim, eu tenho uma queda por ele. E eu não consigo me livrar disso" comentou com uma amiga, por mensagens, enviando a única foto que possuía dele, ao lado de duas de suas colegas.

"Vai enfrente amiga, você consegue" a garota, cujo contato estava salvo como Alana, incentivou.
Mily leu a mensagem, pensou por dois segundos e largou o aparelho sobre o travesseiro, de modo desajeitado.

Não. Sim.
Estava dividida.
Parte de si dizia que poderia acabar mal, e outra parte gostava de acreditar que não havia mal algum em tentar. Só tentar.

Observei, ao longe, o brilho cor-de-rosa renascender em seus olhos, e reluzir por intermináveis segundos.
No fim, pode ser que Mily não tenha apenas uma queda por Lucas, talvez seja um penhasco.

Corações Astros e Rastros de LuzesOnde histórias criam vida. Descubra agora