Talvez em minha mente atormentada eu
deseje que alguém leia isto e entenda
Num final de tarde em maio de 1889, três médicos reuniram-se em Aigburth,
um subúrbio de Liverpool, para realizar uma autópsia muito irregular. O corpo
de um empresário de meia-idade jazia numa cama, onde falecera, em seu
luxuoso quarto forrado de mogno, enquanto sua jovem viúva americana,
perturbada e confusa, havia misteriosamente desmaiado no quarto ao lado. Sob o
olhar de um superintendente da polícia, dois dos médicos dissecaram e
inspecionaram os órgãos internos enquanto o terceiro tomava notas.
O cérebro, o coração e os pulmões pareciam normais e foram colocados de
volta no corpo. O canal alimentar estava um pouco inflamado, havia uma
pequena úlcera na laringe e a parte superior da epiglote estava esfolada. O
estômago, amarrado nas duas extremidades, o intestino, o baço e partes do
fígado foram colocados em jarros e entregues para o oficial de polícia.
Duas semanas depois, os mesmos três médicos foram até o cemitério Anfield,
onde o corpo havia sido enterrado. Eles chegaram às onze da noite e, sob o
brilho amarelo dos lampiões, ficaram ao lado da recente cova enquanto quatro
homens cavavam até o caixão. Sem tirar o corpo do receptáculo, eles removeram
o coração, o cérebro, os pulmões, os rins e a língua para uma investigação mais
aprofundada. Uma testemunha relatou:
Entre os presentes, poucos foram aqueles que não experimentaram um tremor
involuntário quando a palidez e os traços desgastados do cadáver surgiram
diante do brilho cintilante de um lampião segurado acima da cova por um dos
médicos.
O que todos comentaram foi que, embora já enterrado há uma quinzena, o
cadáver estava extraordinariamente preservado. Porém, enquanto o bisturi do
dr . Barran prosseguia com seu rápido e habilidoso trabalho, um leve odor de
podridão surgia sempre que o vento soprava.
Finalmente, as autoridades concluíram que James Maybrick, de cinquenta
anos, um conhecido comerciante de algodão com relações comerciais em
Londres, havia sido envenenado. O atestado de óbito emitido no dia 8 de junho
antecipou de forma chocante o curso da justiça: alegou – antes mesmo que
Florence pudesse ser julgada – que Maybrick havia morrido por
"envenenamento administrado por Florence Elizabeth Maybrick. Homicídio
premeditado"
.
Em agosto, após um julgamento espantosamente desorganizado que prendeu a
atenção da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, a viúva de 26 anos de idade foi
considerada culpada pelo assassinato de Maybrick e condenada à morte. Ela foi
a primeira mulher estaduni-dense a ser julgada numa corte britânica.
Seis meses antes da morte de Maybrick, Thomas Bowyer caminhava por
Whitechapel, uma esquálida vizinhança na região de East End, em Londres. Ele
estava indo coletar o aluguel atrasado da casa número 13 da Miller's Court,
alugada por John MacCarthy para Mary Jane Kelly. Eram cerca de 10h45 da
manhã do dia 9 de novembro, e alegres multidões marchavam para assistir à
passagem da carruagem dourada que, ainda hoje, faz parte das tradicionais
celebrações que marcam a posse anual do Lord Mayor de Londres.
Não houve resposta quando Bowyer bateu à porta. Colocando a mão através
da janela quebrada, ele puxou a suja cortina improvisada e observou a espelunca
que era o patético lar de Mary Kelly. Na cama ensopada de sangue, jazia o que
sobrara do corpo de uma garota.
Estava nua, com exceção de uma sumária camisola. Houve uma certa tentativa
de separar a cabeça. O estômago havia sido rasgado e completamente aberto. O
nariz, os seios e as orelhas foram cortados, e pedaços de pele retirados da face e
das coxas foram colocados ao lado do corpo esfolado. Os rins, o fígado e os
outros órgãos foram colocados ao redor do cadáver, cujos olhos estavam abertos,
completamente aterrorizados no meio de uma face retalhada e sem feições.
Mary Jane Kelly era a mais recente vítima de um criminoso endiabrado que
estava massacrando prostitutas desde o fim de agosto. Todas as mortes
aconteceram perto do fim de semana e dentro da mesma região sórdida de ruas
superpovoadas que formavam, e ainda formam, uma das áreas mais carentes de
Londres. As mulheres foram estranguladas, esfaqueadas e mutiladas, em ataques
cada vez mais brutais.
Mary Ann "Polly" Nichols, considerada a primeira vítima, era filha de um
chaveiro, tinha por volta de 40 anos e vivia em casas de caridade. Depois
apareceram Annie Chapman, 47, Elizabeth Stride, 44, e Catharine Eddowes,
2 46.
E agora havia Mary Kelly, com cerca de 25 anos, a mais jovem de todas.
Por mais cruéis que fossem os crimes, eles poderiam ter caído no
esquecimento ou ter sido desprezados como um mal das "desafortunadas"
, como
eram chamadas as prostitutas, se a polícia não tivesse sido provocada por cartas
e pistas. Esses indícios aparentemente vinham do assassino que, numa infame e
zombeteira carta, deu a si mesmo um apelido que provocou calafrios em toda
Londres e além: Jack, o Estripador.
Ninguém em 1889 tinha motivos para conectar a exumação de James
Maybrick em um sombrio cemitério de Liverpool com o banho de sangue
ocorrido anteriormente num bairro pobre de Londres, a mais de quatrocentos
quilômetros de distância. Nem a polícia nem os médicos em Liverpool poderiam
enxergar a relação entre a macabra autópsia de um respeitável comerciante
realizada à meia-noite e a horrível mutilação de uma jovem prostituta de
Whitechapel. Essa conexão foi finalmente estabelecida 103 anos depois, em
1992, quando um diário recém-achado expôs a possibilidade de James Maybrick
ser Jack, o Estripador.
No dia 9 de março daquele ano, minha agente literária, Doreen Montgomery,
diretora da Rupert Crew Limited, uma das mais antigas e respeitadas agências de
Londres, recebeu um telefonema de Liverpool. Era alguém chamado "sr.
Williams"
. Ele disse que havia encontrado o diário de Jack, o Estripador e
gostaria de levá-lo para ser publicado.
Naturalmente, ela foi cautelosa. Doreen foi minha agente por muitos anos,
então sugeriu que eu estivesse presente na reunião; ela gostaria de uma segunda
opinião. Na verdade, o "sr. Williams" revelou ser Michael Barrett, um ex-
vendedor de sucata que gostava de ser dramático. Ele chegou ao escritório da
Rupert Crew usando um terno novo e carregando uma pasta. Dentro, envolvido
em papel marrom, estava o livro que teria um efeito cataclísmico em tantas
pessoas que tiveram contato com ele, e causaria um alvoroço no até então
pacífico mundo dos historiadores do Estripador. Parecia ser um álbum de
recortes antigo com a capa em couro. A encadernação e o papel variavam entre
média e alta qualidade e estavam bem preservados. A julgar pelas manchas de
cola e marcas deixadas na folha de rosto, o livro serviu para a prática comum da
era vitoriana de abrigar cartões-postais, fotografias, colagens, autógrafos e outras
lembranças. As primeiras 64 páginas haviam sido removidas. As últimas 17
estavam em branco. A referência logo na terceira página ao medo do autor de ser
descoberto –
"estou começando a acreditar que não é sensato continuar a
escrever"
– claramente indica que estamos lendo o final da história – não o
começo. Por alguma razão, o texto do início foi destruído. Seguiam-se, então, 63
páginas com as mais fantásticas palavras que nós já havíamos lido. O tom
variava entre piegas e frenético – muitas frases foram furiosamente riscadas,
com manchas e pingos de tinta por toda parte. Nós duas ficamos abaladas com a
história que se revelava por uma mão errática, refletindo a violência do assunto:
V ou levar tudo na próxima vez e comer. Não deixarei nada, nem mesmo a
cabeça. V ou cozinhá-la e comê-la com cenouras recém-colhidas.
[...]
O sabor do sangue era doce, o prazer foi esmagador .
Próximo do final, o tom fica mais suave:
Esta noite escrevo sobre amor .
[...]
este amor que me desprezou,
este amor que de fato destrói
Finalmente, encontramos estas palavras:
Logo, penso que irei me deitar ao lado de minha querida mãe e pai. Irei buscar
seu perdão quando nos reunirmos. Eu rezo para que Deus permita ao menos
esse privilégio, embora eu saiba muito bem que não mereço. Meus pensamentos
irão permanecer intactos, como lembrança para todos de que o amor de fato
destrói. [...] Rezo para que aquele que ler isto consiga me perdoar de coração.
Lembrem-se todos, seja lá quem você for , que um dia eu fui um homem gentil.
Que o bom Deus tenha piedade de minha alma, e perdoe-me por tudo que fiz.
Eu ofereço meu nome para que todos o conheçam, e para que a história mostre
o que o amor pode fazer com um homem nascido gentil.
Sinceramente,
Jack, o Estripador
Datado deste terceiro dia de maio de 1889
Eu não era uma historiadora do Estripador, mas mesmo após quase quarenta
anos como escritora profissional, senti, neste diário de aparência tão banal, a
emoção da caça! Seria genuíno? Seria uma falsificação? Ouvi, ainda
desconfiada, esperando ansiosamente por pistas enquanto Michael Barrett falava.
Aqueles que leram a primeira edição de meu livro e suas edições subsequentes
perceberam que alguns detalhes das lembranças de Michael mudaram. Fomos
acusados de alterar a história para contestar objeções, ou seja, de mentir para
combater outra mentira. Muito pelo contrário. A pesquisa é uma coisa orgânica,
não estática. Nos cinco anos após meu primeiro encontro com Michael, eu
descobri muitas coisas. Novas informações surgiam a cada semana, e por isso eu
revisei algumas de minhas interpretações de eventos, não para desviar o curso da história,mas para me aproximar de verdade