Jack o estripador

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PREFÁCIO
PROFESSOR DA VID CANTER, diretor do Instituto de Psicologia Investigativa e Ciência do
Comportamento Forense, Universidade de Liverpool, 1997.
Em meu caminho de todas as manhãs para a Universidade de Liverpool, eu
passo pela Riversdale Road – uma típica e sonolenta rua dos subúrbios britânicos
que se estende desde a elegante e arborizada avenida Aigburth Drive e chega até
o cinzento e vasto rio Mersey. O único sinal na entrada da rua é uma placa que
proíbe motoristas de entrarem no agradável parque, que é um refúgio para casais
apaixonados e um abrigo para corredores e pescadores, agora que o Mersey foi
limpo. A Riversdale Road é, portanto, um cenário improvável para a antiga
residência do talvez mais conhecido serial killer de todos os tempos, Jack, o
Estripador. Um assassino que recebeu seu apelido por causa da maneira violenta
como mutilava suas vítimas.
Um pouco além do início da Riversdale Road fica uma grande casa vitoriana
construída com o gentil e avermelhado arenito característico da opulência da
Liverpool do século XIX. Foi ali que James Maybrick viveu no final dos anos
1880, quando os assassinatos de Whitechapel estavam sendo cometidos em
Londres. O Diário, supostamente escrito por esse aparentemente insignificante
homem de negócios, insinua que ele era o assassino diabólico que tantas pessoas
investigaram por muito tempo.
E ainda assim, a mágica "Excursão do mistério" que conduz turistas pelos
mundanos e juvenis lugares frequentados por John Lennon, Paul McCartney e
outras celebridades de Liverpool não passa nem pelo final da Riversdale Road.
O número 7, onde James Maybrick viveu, não atrai um fluxo de visitantes
casuais, apesar de a área de Londres onde os crimes foram cometidos há mais de
um século ainda receber quase meio milhão de visitantes por ano.
Claramente, para a maioria das pessoas parece bastante improvável que um
homem de negócios da era vitoriana, que viveu num ambiente tão agradável e
rico, tenha cometido tantos assassinatos doentios a trezentos quilômetros dali.
Seria muito mais provável que esse Diário fosse algum tipo de fraude
semelhante aos notórios "diários de Hitler"
.
Tais suspeitas cresceram ainda mais por causa da maneira incrível como se
formaram campos opostos tão rapidamente, defendendo ou denegrindo as
afirmações de autenticidade do "Diário do Estripador"
. Em vez de uma pesquisa
sistemática e regular que um documento histórico tão importante exigiria,
formando lentamente um consenso depois da consideração cuidadosa de todas as
opções, o que se tem visto é um festival de alegações e contra-alegações,
alimentado por opiniões de todo tipo de "especialista"
. A única surpresa para
mim é que abdução alienígena e Elvis Presley ainda não entraram na discussão!
De fato, antes de conhecer Shirley Harrison, quando me pediram que
comentasse o Diário, não era apenas impossível conseguir qualquer informação
clara ou detalhada sobre sua origem, ou sobre os testes realizados, mas era
realmente inviável entrar em qualquer diálogo sensato sobre as alegações e
contra-alegações, de tão veementes que eram seus defensores. Desde aquelas
bobagens iniciais, os comentários de astrólogos, grafólogos e um pequeno
exército de médiuns, nenhum deles resistente à validação científica, ofuscaram o
crescente corpo de informações acadêmicas e objetivas que Shirley Harrison e
seus editores juntaram sobre esse curioso documento. Seus estudos cuidadosos
exigem que O diário de Jack, o Estripador seja observado com atenção.
Por natureza, os videntes e todos os defensores do sobrenatural expressam
suas opiniões com grande confiança. Eles oferecem uma proliferação de pontos
de vista para que os ingênuos e incautos possam escolher alguma coisa para usar
como suporte de suas crenças. Esses aparentes cristais de sabedoria fazem as
cuidadosas e específicas opiniões científicas empalidecerem, se as compararmos.
O constante crescimento do severo corpo de informações técnicas reivindica
educadamente consideração em meio às vocais alegações de celebridades da
mídia e contra-alegações de cínicos profissionais.
Dessa improdutiva troca de polêmicas surge um clã dos convertidos, que
emerge sobre as bravatas e os ícones de sua fé. E assim, quando tentei encontrar
evidências a favor e contra a autenticidade do "Diário do Estripador"
, eu me
diverti com os prodigiosos relatos de médiuns estrangeiros e de astrólogos que se
debruçaram sobre os mapas astrais do sr. e da sra. Maybrick. Eu vi
apresentadores de televisão cheirando o caderno vitoriano no qual o Diário foi
escrito como se ele fosse uma garrafa de vinho que revelaria suas origens em seu
distinto buquê. Testemunhei um médium balançar um pêndulo em cima do
documento entoando "Isso foi escrito em 1888... 1889... 1890?" enquanto
pessoas aparentemente inteligentes e bem informadas o assistiam sem que nem
mesmo um sorriso desmascarasse sua incredulidade. Isso tudo é uma besteira tão
grande que até pensei em rejeitar o Diário, apenas mais um componente do mito
de Jack, o Estripador, e enxergá-lo como outra dessas fantasias do terceiro
milênio baseadas em fato e ficção.
Então, quando paro no semáforo da Riversdale Road, enquanto ouço as
bravatas de Billy e Wally na estação de rádio local, penso em como poderia ter
sido inventada uma história tão estranha como essa sobre um estripador de
Liverpool que mantinha um diário. Que tipo de pessoa, ou mesmo grupo de
pessoas, poderia ter criado uma ideia tão improvável? Perfis psicológicos
criminais do Estripador existem aos montes, mas como seria o perfil de um
fraudador que perpetrou uma mentira tão criativa?
O primeiro pensamento que vem à mente é que o autor do Diário, seja um
fraudador ou mentiroso, era um homem incrivelmente sutil. (A maioria dos
crimes e fraudes são cometidos por homens, apesar de as fraudes atraírem mais
as mulheres. Mesmo assim – ao contrário das aspirações feministas – as
mulheres são geralmente secundárias em relação a seus parceiros.) Quando li o
Diário pela primeira vez, fiquei espantado com a falta de estrutura do texto. Não
é realmente um diário no sentido mais comum – é como um registro de
pensamentos e sentimentos, e em partes até mesmo parece um caderno cheio de
versos piegas. Não existe exatidão nas datas e o texto ser-penteia por digressões,
relatos de eventos, planejamentos de ações. Na mesma seção que descreve a
mais horrível mutilação pós-morte, existe o estudo para um esquema de rimas. O
registro dos crimes e as reações a parentes e conhecidos estão misturados numa
coisa só.
Isso é escrita psicológica criativa da mais alta ordem. Tenho certeza de que a
maioria das pessoas que decidisse escrever um diário sobre a vida de outra
colocaria eventos públicos conhecidos de modo claro, para que o leitor os
reconhecesse. De fato, esse autor fraudulento teria que tomar os eventos públicos
como ponto de partida e construir o diário ao redor deles. Mas nosso fraudador é
muito mais astuto. O Diário mostra os sentimentos do escritor. Ele é dominado
pelo registro de suas experiências. As anotações presentes nele são aquelas que
seriam de interesse do autor. Não se concentra naquilo que os outros o viram
fazer.
Muitos serial killers escrevem autobiografias e alguns até mantêm um diário.
Esses registros geralmente capturam a veia egocêntrica e narcisista que os
impele a esses excessos de depravação tão repugnantes. Há exemplos que
imediatamente me ocorrem. O livro de memórias de Fred West é cheio de
detalhes triviais da vida cotidiana e permeado de referências casuais às
ultrajantes explorações sexuais de seus filhos, azeitadas com melosas
declarações de amor. Pee Wee Gaskins descreve com alegria como matou bebês
abusando sexualmente deles, insinuando num tom jocoso que seu prazer foi
justificativa suficiente. Charles Manson mantém uma discussão maníaca e
autocentrada por toda sua extensa correspondência. Infelizmente, existem muitos
outros exemplos. E todos estão muito distantes da seriedade pesada daqueles que
escrevem sobre Jack, o Estripador. De fato, poucos escritores poderiam capturar
o egocentrismo abrangente misturado com a ironia exultante que este Diário
possui.
Existe outro teste, muito mais objetivo, que os psicólogos criaram para ajudar
a determinar a autenticidade de um relato. Esse método foi batizado com o
grandioso título de "Análise de Conteúdo Baseada em Critérios"
, mas o que ele
realmente faz é listar os aspectos de uma narração. Esses aspectos são tomados
para revelar a densidade da experiência na qual o relato se baseia e o tipo de
detalhe que seria mais provável surgir numa experiência genuína do que numa
fantasiosa. É claro que escritores criativos conseguem manipular esses critérios
para fazer sua obra parecer verdadeira, mas pessoas menos hábeis podem
realmente dar passos em falso. O truque mais esquecido é mostrar um detalhe
quase irrelevante, ou um "fato trivial paralelo"
, que incorpora a narrativa dentro
de um contexto em particular, principalmente quando esse detalhe não faz o
relato se desenvolver e pode até enfraquecer seu propósito mais óbvio. Um
exemplo: quando uma vítima de estupro menciona que depois do ataque ficou
preocupada em chegar atrasada ao trabalho. Esse tipo de detalhe pode
aparentemente indicar que ela não ficou seriamente traumatizada, mas é o tipo
de pensamento que ocorre quando a mente está no piloto automático.
O autor do Diário é particularmente um mestre no que diz respeito a mostrar
fatos triviais paralelos, aqueles detalhes irrelevantes que indicam um autor cuja
mente não está inteiramente voltada para os eventos que descreve, e que parece
escrever apenas para resolver seus próprios sentimentos em vez de contar uma
história. Ele pode se gabar de ter enganado a polícia, mas sente a necessidade de
registrar o quanto suas mãos estavam frias. Em meio aos horríveis trechos onde
descreve como removeu partes dos corpos, ele adiciona um comentário
doméstico, imaginando "quanto tempo irá durar?"
. Esse é o tipo de comentário
específico que, por aparentemente se originar das preocupações imediatas do
autor, faz o leitor pensar sobre a pessoa que escreve, e não apenas sobre suas
ações. Portanto, essa é uma poderosa ferramenta literária se usada efetivamente,
mas que facilmente pode se tornar uma autoparódia.
O autor do Diário possui uma maneira particularmente inteligente de manter
essas irrelevâncias coerentes com o personagem que está criando. Somos
apresentados a um homem que não vê problemas em assassinar e mutilar outras
pessoas, mas ao mesmo tempo é psicologicamente vulnerável. Ele se preocupa
desesperadamente com seu próprio estado de saúde, e possui determinação em
eliminar pensamentos intrusos sobre seus filhos que possam distraí-lo de sua
campanha. Depois da mais violenta explosão, ele nota que "as crianças gostaram
do Natal"
. Desses apartes, surge um protagonista surpreendentemente inseguro.
Não é nenhum Bruce Willis implacável, ou um Clint Eastwood frio e calculista,
mas um homem que sente falta do irmão, que fica impressionado por não ter
sido pego, que é dependente de seu "remédio"
, mas que eventualmente se torna
obsessivo com as próprias ações e suas consequências.
Então, nosso perfil literário do autor desse fraudulento Diário, se ele for
mesmo falso, já está revelando algumas características distintas. Aqui temos um
escritor sutil que está determinado a nos envolver nos pensamentos e
sentimentos de Maybrick, mesmo que isso crie ambiguidades nos detalhes de
suas ações. Mas ele também é notavelmente hábil na maneira como desenvolve
sua ficção. Se não dissessem a você que esse é um texto verdadeiro de um serial
killer famoso, as páginas iniciais não lhe dariam nenhuma pista. Existem
referências indiretas que indicam o envolvimento do autor em atividades
nefastas que não podem ser especificadas pelo medo de ser descoberto. Existem
palavras emotivas que levantam mais perguntas do que respostas. Principalmente
o curioso termo cafetão,
1 que demonstra a raiva contra alguém que, apesar de
execrada como puta, possui um grande significado emocional para o autor.
Os parágrafos iniciais nos conduzem a um intrigante mundo de subterfúgios e
tensão emocional com insinuações sexuais suficientes apenas para capturar
nossa atenção sem revelar muito do enredo. Nós já estamos envolvidos quando
fica claro que o autor possui uma "campanha"
, como ele mesmo diz, embora não
conte explicitamente sobre o que ela é – apesar de o sexo e a violência, duas
grandes receitas para ganhar o interesse do público, não estarem muito distantes
da superfície. Apenas quando nosso interesse já está elevado é que esse hábil
escritor começa a lançar conexões para um mundo que possamos reconhecer.
Existe uma sutileza ainda mais profunda na maneira como o Diário foi
elaborado. Inicialmente não fica claro do que se trata, apenas sugere uma
possível tentativa de planejar uma certa "campanha" perigosa. De fato, o que
temos aparenta ser a segunda metade de um livro que teve suas primeiras
páginas arrancadas. A primeira página nem mesmo começa com uma sentença
completa, parece ser o final de uma frase da página anterior: "o que irá acontecer
com elas, elas parariam neste instante"
. É como se fosse a continuação de uma
ideia.
"Mas eu desejo isso? minha resposta é não.
" É preciso que o leitor infira a
parte que falta: "se elas soubessem"
.
Temos aqui uma pessoa discutindo consigo mesma, e nós a encontramos no
meio desse debate. A discussão é sobre se as vítimas gostariam de mudar suas
vidas se soubessem as consequências que as escolhas delas teriam. Desse modo

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