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Uma sombra negra paira sobre a casa; é
o mal
Oito meses depois do casamento, no dia 24 de março de 1882, nasceu o
primeiro filho do casal Maybrick, chamado James Chandler, afetuosamente
conhecido como Bobô. Era um bebê frágil e prematuro, e Florie teve um parto
difícil.
Naquela primavera, Maybrick retornou com sua família para os Estados
Unidos. Nos dois anos seguintes, eles passaram metade do tempo em Liverpool e
a outra metade em Norfolk, morando numa casa alugada na Freemason Street.
Todas as manhãs, às oito horas, Maybrick saía de casa e caminhava até o
trabalho. Mas em vez de ir direto para seu escritório na Main Street, perto da
Boston Quay, ele parava na C. F. Greenwood, uma farmácia na rua em que
morava, para comprar seu estoque diário de arsênico.
Foi durante esse período que John Fleming, um marinheiro mercante de
Halifax, Nova Escócia, o viu colocando um pó cinza em seu mingau. Mais tarde,
ele se recordou de uma frase que Maybrick dissera: "V ocê ficaria chocado, eu
imagino, se soubesse o que é isto. É arsênico. Todo mundo ingere um pouco de
veneno. Por exemplo, estou ingerindo arsênico suficiente para matar você. Eu
tomo isso de vez em quando porque sinto que me fortalece"
.
Da farmácia, Maybrick andava até a Bolsa do Algodão, onde exportadores,
corretores e compradores se misturavam. O almoço acontecia às treze horas, e o
resto do dia era gasto preenchendo cartas e documentos antes de visitar um dos
muitos clubes de Norfolk. As minutas da Bolsa do Algodão registraram a
presença regular de Maybrick como membro de comitê.
Florie escreveu mais tarde em uma carta que nessa época seu marido começou
a esfregar as costas das mãos. O que ela não sabia é que a pele ressecada é um
dos sintomas decorrentes do longo tempo de abuso de arsênico.
Maybrick não estava sozinho em seu vício. O uso de arsênico, juntamente
com o uso da estricnina, que tinha efeitos semelhantes, era uma moda que
crescia rapidamente entre os homens que se dedicavam a uma profissão, tanto na
Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos. De fato, o Liverpool Citizen comentou
na época do julgamento de Florie:
Todos nós sabemos perfeitamente que esses homens de negócios possuem o
hábito de ingerir substâncias perigosas, como a estricnina, o arsênico, e sabe-se
lá mais o quê, tanto quanto bebem champanhe e fumam tabaco. Ficamos até
sabendo que a quantidade ingerida nos escritórios da Exchange Flags é tão
grande que poderia envenenar toda a Castle Street.
Quando contraem o hábito de ingerir arsênico, eles se tornam escravos por toda
a vida [...] Uma vez que entram nesse caminho, não é possível voltar atrás,
pois, como atestam os toxicologistas, se não puderem receber sua dose diária,
descrevem, com justiça, que "as dores do inferno tomam conta da pessoa"
, e
experimentam todos os horrores do lento envenenamento por arsênico.
O clássico livro para especialistas The Materia Medica of Homeopathic
Remedies, escrito pelo dr. James Tyler Kent (1849-1916), foi publicado pela
primeira vez em 1912. Trata-se de um livro para praticantes de medicina, que
não se encontra facilmente em bibliotecas públicas. Nele, encontramos a
seguinte análise sobre o vício em arsênico:
O arsênico afeta cada parte do homem e aparenta exagerar ou diminuir todas as
suas faculdades [...] A ansiedade encontrada no arsênico é misturada a medo,
impulsos, inclinações suicidas, surtos repentinos e manias [...] há uma
queimação no cérebro, no estômago, na bexiga e na garganta. A pele coça e fica
irritadiça. Os sintomas mentais mostram [...] um distúrbio do intelecto e da
vontade. Ele pensa que deve morrer .
O dr. Kent fala em "gritos de dor" e delírios na cama, e diz que o paciente de
arsênico está sempre com muito frio (apesar das sensações de queimação) e
querendo se aquecer. Exceto pelo fato de Florie ter notado James esfregando as
mãos, nenhum outro sintoma da dependência de arsênico foi mencionado no
julgamento ou na literatura que se seguiu. Esses sintomas, porém, aparecem
inconscientemente na narrativa do diário do começo ao fim:
minhas mãos estão frias [...] o verão está próximo, o clima quente me fará bem
[...] a dor queimou para dentro da minha mente [...] Junho é um mês tão
agradável [...] Tenho medo de dormir por causa dos meus pesadelos recorrentes
[...] Sinto um entorpecimento em meu corpo [...] Não tenho coragem para tirar
minha própria vida. Eu rezo todas as noites para encontrar a força para fazê-lo,
mas a coragem me escapa.
Seja lá quem escreveu o Diário descobriu os sintomas da dependência de
arsênico descritos no livro do dr. Kent, ou experimentou por si próprio a doença.
O carvão começou a substituir o algodão como o principal produto de
exportação de Norfolk e, portanto, em março de 1884, James decidiu levar sua
esposa e o pequeno Bobô para a Inglaterra de uma vez por todas. No dia 22 de
agosto de 1884, James entregou sua carta de demissão para a Bolsa do Algodão
de Norfolk. A essa altura, eles haviam alugado uma casa nova em folha em
Liverpool, chamada Beechville, no exclusivo subúrbio de Grassendale. Ele e
Florie passeavam de charrete, jogavam cartas e, acima de tudo, compartilhavam
o amor por corridas de cavalo: eram visitantes regulares de Aintree, casa da
famosa corrida Grand National.
Os Maybrick foram aceitos na alta sociedade de Liverpool, que se encontrava
no edifício Wellington Rooms, em Mount Pleasant, onde tapetes eram estendidos
no pavimento para os cinco bailes anuais e as senhoras emergiam de carruagens
"vestidas de modo tão deslumbrante como convêm às esposas e filhas dos
homens mais ricos do melhor porto da Grã-Bretanha"
. Maybrick também era
membro do elegante Palatine Club. O Diário faz referência a um jantar no clube
com "George"
– seu amigo mais próximo era o negociante George Davidson.
Mas o casal não se encaixava de verdade na alta sociedade da época, conhecida
como "currant jelly set"
. Assim como muitos vitorianos que buscavam status,
Maybrick se tornou Cidadão Honorário, embora não tenha sido mencionado
entre as pessoas distintas nos jornais da alta sociedade. E o casamento e a volta
para Liverpool não detiveram seu consumo de drogas, que estava se tornando
pior. Ele tinha amplo acesso a elas por meio de seu primo, William, que
trabalhou para John Thompson, um farmacêutico que vendia por atacado, na
Hanover Street, número 58. Quando William foi despedido, em 1886, Maybrick
chegou a pedir a Thompson que o readmitisse, mas o pedido não obteve sucesso.
(O primo morreu em outubro de 1888 no abrigo de Liverpool.)
Mas esse acontecimento acabou não sendo importante, pois Maybrick já tinha
outra fonte para conseguir seu "remédio": um farmacêutico com laboratório
próprio chamado Edwin Garnett Heaton, que trabalhava na Exchange Street
East. Heaton o ajudou por cerca de dez anos, tempo no qual sua dose prescrita
cresceu de quatro para sete gotas. (Era comum o arsênico ser vendido tanto
líquido como em pó.) Maybrick frequentava o local com regularidade, algumas
vezes até cinco vezes ao dia, para comprar aquilo que o farmacêutico descrevia
como sua dose de "mantenha-me acordado" ou até de "paixão excitante"
. Sete
gotas cinco vezes ao dia era uma quantidade quase equivalente a um terço de um
grão de arsênico – e um grão é suficiente para matar. Quando Maybrick viajava a
negócios, Heaton preparava vários frascos contendo de oito a dezesseis doses.
A droga estava claramente tendo um impacto em Maybrick. O irmão de
Florie, Holbrook St. John Chandler, que então já era um médico em Paris, ficou
preocupado com o comportamento de seu cunhado e escreveu:
Eu não finjo saber seus truques, mas ele proibiu Florie de nos contar sobre sua
vida e se fechou completamente para ela. Nós, infelizmente, não podemos
escrever para ela ou saber dela, exceto através dele, que dita todas as suas
cartas. Eu lamento profundamente essa atitude inesperada de Maybrick, que se
revelou um bruto insensato, mas, sendo assim, nós temos que nos proteger o
quanto for possível.
Na mesma época, a baronesa escreveu que James forçou Florie a sugerir "que
seria melhor que eu vendesse a casa. Eu deveria alugar um quarto e ir trabalhar;
era absurdo manter uma criada ou um pequeno cão (minha única companhia)"
.
Nessa época, Maybrick contatou uma mulher chamada Pauline Cranstoun, de
Londres, que dizia ler horóscopos e ser capaz de diagnosticar doenças obscuras.
Sua história é mencionada por J. H. Levy em seu livro sobre o caso Maybrick,
publicado em 1899 e chamado The Necessity for Criminal Appeal.
"Ele escreveu
para mim"
, ela disse,
"contando um estranho relato de seus vários padecimentos
e disse que tinha o hábito de ingerir grandes quantidades de arsênico em sua
comida, pois descobriu que essa era a melhor e mais segura maneira de ingerir a
droga. Disse que ajudava sua digestão e acalmava seus nervos"
.
Numa entrevista para o New York Herald após o julgamento de Florie, Pauline
Cranstoun contou: "Escrevi para ele dizendo que deveria parar de usar arsênico,
ou isso resultaria certamente numa doença fatal em algum momento. Ele nunca
respondeu"
.
Levy revela que, infelizmente, toda essa correspondência foi destruída.
(Pauline Cranstoun pode render uma história interessante, que nós ainda estamos
pesquisando. Richard Lancelyn Green, em seu livro The Uncollected Sherlock
Holmes, de 1983, faz referência a uma carta recebida em 1903 por Sir Arthur
Conan Doyle de uma senhora que vivia com "Pauline Cranstoun, filha do
décimo barão Cranstoun"
.)
Durante 1884, houve um breve declínio econômico na Grã-Bretanha. Amigos
diziam que Maybrick ficou tão preocupado com seu dinheiro quanto era com sua
saúde. A própria Florie nunca havia se preocupado com o orçamento doméstico.
Ela era extravagante em sua paixão por roupas bonitas, compradas em grande
quantidade na loja Woollright. A elegante loja de departamentos na Bold Street
era uma tentação para qualquer mulher que gostava de se vestir bem, com sua
boa reputação e imenso estoque de peles, joias e tecidos exóticos. O fato de que
os ânimos da família se tornaram desgastados não foi exatamente uma surpresa.
A baronesa escreveu o seguinte para um advogado em Nova Y ork: "Minha pobre
garotinha está completamente sob o poder de seu marido, e ele não se comporta
como um filho para mim"
.
Em dezembro daquele ano, o irmão de Florie contraiu tuberculose e morreu
quatro meses depois. Maybrick viajou sozinho para o funeral em Paris,
provavelmente porque não era costume que as mulheres comparecessem. Mas
por que Florie não usou essa triste ocasião para visitar sua mãe?
Florie possuía poucos amigos íntimos. Para as mulheres de Liverpool, ela era
uma forasteira. Havia apenas duas exceções, as irmãs Mathilda Briggs, uma ex-
admiradora de Maybrick, e Louisa Hughes, com quem conversava regularmente.
Depois da morte de seu irmão, Florie pediu à sra. Briggs um empréstimo de 100
libras para acalmar credores, quantia que ela devolveu aos poucos.
No dia 20 de julho do ano seguinte, nasceu sua filha, Gladys Evelyn.
Cuidando dela estava o dr. Hopper, da Rodney Street, que havia tratado os
Maybrick desde o casamento. O nascimento de Gladys não ajudou a restaurar a
paz no relacionamento. Em 1887, uma perturbada Florie descobriu aquilo que os
outros já sabiam: havia outra pessoa na vida de seu marido.
Quem era essa mulher? – citada várias vezes no Diário. Poderia ser Sarah Ann
Robertson, que desapareceu dos registros entre 1876 e 1891? Não há evidências
de seu paradeiro durante essa época. Seria possível que ela tenha seguido James
até Liverpool?
Até agora, nós não sabemos. John Baillie Knight, um amigo de Florie,
afirmou em um documento assinado em 1889 que alguns anos antes ela havia
lhe confessado que sabia que Maybrick tinha uma mulher em Liverpool. Os
jornais locais na época do julgamento de Florie também informaram que uma
mulher que estava vivendo na cidade havia sido amante do falecido por vinte
anos. Quando Michael e Edwin a visitaram, descobriram que ela tinha joias e
roupas que pertenciam a Florie, e alegou terem sido dadas por James como
forma de pagamento por dinheiro emprestado. Além disso, William Stead, editor
da revista semanal vitoriana Review of Reviews, e Bernard Ryan, em seu livro de
1977 The Poisoned Life of Mrs Maybrick, alegam que em 1887 o casal passou a
dormir em camas separadas por insistência de Florie.
No livro Murder , Mayhem and Mystery in Liverpool, Richard Whittington
Egan fala das crescentes ausências de Maybrick e das "longas noites solitárias"
que Florie passava.
Quando uma epidemia de escarlatina assolou a Grã-Bretanha na primavera de
1887, Bobô, então com cinco anos, adoeceu, Florie permaneceu em casa
cuidando dele enquanto James, numa decisão pouco convencional, levou Gladys
e a babá das crianças, Emma Parker, em uma viagem de seis semanas para o País
de Gales. Eles ficaram no Hand Hotel em Llangollen. Esse hotel parece ter sido
um dos favoritos da família; James já tinha se hospedado lá com Florie e
Gertrude Janion, e em 1889 os registros mostram que ele permaneceu lá com
quatro companheiros homens.
Quando voltou, Maybrick diminuiu a mesada de Florie para comida, o
pagamento dos criados e para outros gastos domésticos. Em outubro daquele
ano, ela escreveu para sua "querida mamãe" dizendo que Maybrick havia tido
apenas 125 libras de lucro nos últimos cinco anos e que seu espólio havia
diminuído para 1.500 libras. Ela afirmou que estavam usando crédito para
mobiliar a casa e reclamou:
Estou completamente esgotada e num estado de nervosismo que mal consigo
fazer qualquer coisa. Sempre que a campainha toca eu sinto que vou desmaiar
com medo de ser alguém trazendo uma cobrança, e quando Jim chega à noite, é
com medo e terror que olho em seu rosto para saber se alguém esteve em seu
escritório por causa de alguma dívida [...] minha vida é um constante estado de
medo de alguém ou de algo. É impossível nadar contra a corrente. V ale a pena
viver a vida? Eu alegremente desistiria da casa e mudaria para outro lugar , mas
Jim diz que isso o arruinaria imediatamente. Pois é preciso manter as
aparências até ele juntar mais capital para pagar suas dívidas, já que se
qualquer suspeita surgisse, todas as contas seriam cobradas de uma vez, e como
Jim pagaria com o que ele possui hoje?
Maybrick estava longe de ser consistente e nem sempre foi honesto em suas
movimentações financeiras. Quando morreu, deixou pouco mais de 5 mil libras,
o equivalente a 600 mil reais hoje. Ele não estava tão pobre quanto Florie
acreditava. Além de todas as preocupações financeiras, Florie também refletia
sobre o bem-estar da pequena Gladys. Na mesma carta, ela acrescenta:
A babá não é mais a mesma desde o nascimento da bebê. Pobre pequenina, não
recebe carinho nem atenção quando não estou com ela, mas mesmo assim é uma
criança tão amorosa, sempre com um sorriso para cada palavra jogada que a
babá diz para ela. Não consigo entender porque a babá não se afeiçoou à
criança. Tenho medo que ela esteja muito velha para um bebê e não possua mais
[...] a paciência para cuidar de Gladys da mesma maneira que fez com Bobô.
Com ele foi um trabalho de amor , com a pobre Gladys parece apenas obrigação.
Então, uma nova babá, Alice Y app, descrita pelo Liverpool Echo como "uma
jovem atraente"
, juntou-se à família em setembro de 1887. Ela morava com seus
empregadores da época, o sr. e sra. David Gibson, em Birkdale, Southport.
Maybrick mais uma vez desprezou a convenção e foi sozinho tratar com ela. Isso
era considerado tarefa da mulher em qualquer lar. Havia sugestões nos jornais de
que a relação entre James e Alice Y app não era exatamente o que deveria ser.
A tensão sobre Florie se tornou ainda mais intensa. Ela sabia – e ninguém
mais conseguia perceber – que sua vida estava fora de controle. Ela estava
endividada e preocupada com o consumo de drogas, com a saúde e com a
infidelidade de seu marido. Além da suspeita de adultério, Florie agora temia
que ele estivesse ingerindo uma overdose de seus "remédios"
. Amigos que o
visitavam quando faziam viagens de negócios vindos dos Estados Unidos
frequentemente comentavam sobre seu rápido envelhecimento, embora ainda
tivesse 48 anos. Esse era o estado mental de Florie quando ela encontrou pela
primeira vez o atraente Alfred Brierley, de 36 anos.
No inverno de 1887-1888, os Maybrick organizaram um jantar. Alfred
Brierley, um corretor de algodão de Liverpool, estava entre os convidados. Sua
empresa, a Brierley Wood and Co., ficava na Old Hall Street, perto do escritório
de Maybrick.
Brierley nasceu em Rochdale, em 1851, e cresceu com nove irmãos e irmãs. A
família Brierley era um pilar da comunidade, com origem dentro da segurança
da Igreja inglesa e do Partido Conservador e ocupando uma posição de
considerável riqueza e influência, graças ao comércio de algodão. Ruas foram
batizadas em homenagem à família. Brierley era solteiro, atraente e
impressionável. Mais tarde ele alegou, sem ser convincente, que encontrou
Florie apenas na companhia de outras pessoas durante o ano seguinte, e que eles
eram apenas "conhecidos distantes"
.
Apesar de incomodada com os casos de seu marido, a própria Florie era uma
namoradeira, uma mulher animada que adorava a atenção dos homens. Além
disso, como ela mesma explicou à sua mãe, Brierley "era gentil" com ela.
Em Liverpool, naqueles tempos de censura, seria preciso pouco para que uma
garota impetuosa do sul dos Estados Unidos saísse da linha. E Florie era alguém
que, de acordo com uma amiga americana, cresceu "num lugar vibrante, onde as
mulheres eram muito mais animadas"
. Lá, uma garota desacompanhada podia se
juntar a um grupo de homens e mulheres em um sábado e fretar um barco para
dançar e beber por toda a noite, voltando para casa para dormir o dia inteiro. Tal
comportamento seria inaceitável na Inglaterra vitoriana. Seja lá qual for a
verdade sobre os sentimentos de Florie por Brierley, ou mesmo se ela teria
alimentado esses sentimentos ainda em 1887, o Diário sugere que James
Maybrick tinha uma crescente paranoia sobre sua infidelidade.
Provavelmente em março de 1888, os Maybrick se mudaram de Grassendale
para Aigburth, a menos de um quilômetro de distância, ocupando a muito mais
imponente e mais bem situada Battlecrease House, que compraram com um
contrato de arrendamento de cinco anos. Levaram também a babá Y app, o
jardineiro James Grant, que tinha acabado de se casar com a ex-criada Alice, e a
copeira Mary Cadwallader. A cozinheira Elizabeth Humphreys e a criada Bessie
Brierley (sem relação com os outros Brierley) juntaram-se a eles no decorrer
daquele ano.
A qualidade das criadas dos Maybrick era notável. Um jornalista descreveu as
garotas na época do julgamento de Florie: "Uma coisa que chamou a minha
atenção, e até posso dizer que fiquei admirado, foi a aparência inteligente das
criadas e babás [...] elas estavam todas vestidas 'à la mode'
, e a cozinheira,
principalmente, parecia muito fascinante, até mesmo provocante"
.
Alice Y app cresceu com um irmão e quatro irmãs em Nag's Head, Ludlow,
Shropshire, onde seus pais cuidavam de um albergue. As garotas sempre
estavam extremamente bem vestidas.
Mary Cadwallader, conhecida como "Mary, a gentil"
, cresceu numa fazenda
de 160 hectares, também em Shropshire, e teve uma educação privada. A mais
velha entre catorze crianças, é um mistério como se tornou copeira. Pequenina,
com longos cabelos castanhos, ela era geralmente descrita como uma lady. Ela
compartilhava o amor dos Maybrick por cavalos, sabia cavalgar bem e pedia
toda semana a um amigo que apostasse uma moeda num cavalo em seu nome, já
que não era permitido às mulheres apostar. Anos depois, ela cuidou de um
coelho branco e costumava levá-lo para passear numa coleira.
Nenhuma dessas garotas pertencia à classe trabalhadora.
Os vizinhos do casal na Riversdale Road eram homens de negócios e
comerciantes, embora vacas pastassem pela estrada, dificultando o caminho das
carruagens. Florie não perdeu tempo em mobiliar a casa. Cada quarto possuía
tapetes de veludo e cortinas com tecido felpudo vermelho-escuro, forradas com
cetim azul-claro. A mobília dourada tinha estofados em cores vermelho-escuro e
azul. No gabinete particular de Maybrick, que estava sempre trancado, havia
poltronas de couro muito confortáveis. Era lá que ele guardava vinho, charutos,
cartas e as fichas de pôquer que usava para entreter seus amigos. No andar de
cima, seu closet, acessível através do quarto principal, era território proibido
para qualquer um.
Naquele verão havia uma visitante na Battlecrease que, mais tarde, contaria
suas lembranças das estranhas cenas domésticas da casa.
"Pequena senhorita" foi o apelido que Maybrick deu à jovem Florence
Aunspaugh, uma impetuosa garota norte-americana de oito anos de idade, que
morou com a família enquanto seu pai, John, chefe da empresa Inman Swann
and Co. de Atlanta, no estado da Geórgia, estava na Europa.
Quando já era uma velha senhora nos Estados Unidos, Florence contou sua
história para Trevor Christie. A maioria das notas tomadas pelo escritor não
apareceu em seu livro, tendo o material não usado aparecido apenas
recentemente. Armazenado nos arquivos da Universidade de Wyoming, esse
material figura com destaque entre os muitos documentos e recordações que se
mostraram inestimáveis para mim na reconstrução da vida do casal Maybrick.
Florence contou a Christie:
Battlecrease era um lar suntuoso. O terreno devia consistir de cinco ou seis
hectares, que eram muito bem cuidados. Havia grandes árvores, cercas de
arbustos e canteiros de flores exuberantes. Espalhados pelo terreno ficavam
retiros de pedra ou abrigos de verão, com bancos cobertos de hera e outras
plantas. Um solário ficava perto da casa, e um casal de pavões perambulava
pelo terreno [...] correndo pelo terreno também havia uma pequena corrente
natural de água, parte da qual foi alargada para formar um lago [...] esse lago
foi preenchido com peixes, e cisnes e patos nadavam em sua superfície. Acho
que o lago é a coisa de que mais me lembro, pois cheguei a cair nele por duas
vezes e o jardineiro teve que me tirar de lá.
A sra. Maybrick gostava muito de caçar e tinha vários cachorros [...] Eu vi seis
cavalos, dois pretos maravilhosos que ficavam sempre atrelados à carruagem,
dois cinza que ficavam atrelados a uma carruagem menor , de duas rodas, e dois
cavalos com selas: um para o sr . Maybrick, outro para a sra. Maybrick.
Para a jovem Florence, Florie era uma figura sedutora:
A glória que a coroava era seu cabelo. Era loiro, mas não do tipo amarelo sem
graça, tinha um toque de vermelho suficiente para dar um rico brilho dourado.
Os olhos da sra. Maybrick tinham o mais belo azul que eu já vi. Eram olhos
grandes, redondos, de um azul tão profundo que às vezes parecia violeta; mas
sua expressão era muito peculiar [...] você focava nos olhos dela com um olhar
firme e eles pareciam inteiramente sem vida ou expressão, como se estivesse
observando os olhos de um cadáver . Totalmente sem vida e sem expressão. Se
continuasse a olhar , seus olhos mudariam e então pareceriam o olhar de um
animal assustado.
Em nenhum momento havia uma expressão de inteligência, seja nos olhos ou na
face, mas mesmo assim havia um charme magnético em seu semblante que [...]
parecia irresistível.
Ela sabia muito bem de sua beleza e gostava de ser admirada, principalmente
pelos homens. Ela parecia gostar muito de estar ao redor deles [...] a vi fazer
carinho no topo da cabeça de um homem, enganchar o braço em outro e pousar
a mão no joelho de mais outro. Ela fazia isso na frente do sr . Maybrick. Desde
que amadureci, comecei a lembrar e imaginar por que ele tolerava aquilo, mas
o fato é que ele o fazia.
O James Maybrick da memória da jovem Florence era severo e temível, mas
com lampejos de ternura com seus filhos.
Depois do café da manhã, o sr . Maybrick tomava seu pequeno filho e eu no colo
e conversava conosco. Ele me provocava para ver que tipo de resposta petulante
eu daria [...].
Um dia o sr . Maybrick instruiu a babá Yapp a vestir a mim e ao garoto
excepcionalmente bem, pois queria nos ver no salão de baile antes do jantar ser
anunciado [...] acho que nunca estive tão bonita em minha vida... a criada do
andar superior nos acompanhou pela escadaria até o saguão de entrada. O sr .
Maybrick nos encontrou na porta que dava para o salão externo. Tomando
minha mão e me conduzindo pelos arcos entre os salões ele disse: "Senhoras e
senhores, eu quero apresentá-los a essa pequena senhorita vinda dos Estados
Unidos"
.
Embora não fosse o caso de considerá-lo um homem atraente [...] ele tinha uma
bonita testa, um rosto intelectual e agradável, e um semblante honesto. Tinha
cabelos claros cor de areia, olhos cinza e uma pele rosada. Não possuía nada
daquele comportamento abrupto e áspero, tão comum dos britânicos, era
extremamente culto, polido e refinado em suas maneiras, e era um ótimo
anfitrião.
Mas havia duas características infelizes em sua personalidade. Sua disposição
sombria e melancólica, e o temperamento extremamente irritadiço. Ele também
imaginava que sofria de qualquer doença "passível de a carne sofrer"
.
Sim, o sr . Maybrick era dependente de arsênico. Ele ansiava por sua dose como
se fosse um drogado. Usava dentro de casa. Estava sempre atrás do médico para
que receitasse, e do farmacêutico para fazer o tônico. Ele disse uma vez para
minha mãe: "Eles me dão apenas o suficiente para piorar e me preocupar , e me
deixar sempre desejando mais"
.
Ele estava sempre ingerindo comprimidos de estricnina, e gostava de caldo de
carne com arsênico. Meu pai disse um dia: "Maybrick possui uma dezena de
farmácias em seu estômago"
.
Presenciei sua raiva em muitas ocasiões, e por duas vezes ele ficou furioso. Eu
fui a causa de seu segundo ataque [...] Sua bebê [Gladys] possuía um pequeno
berço com altas grades ao redor [...] Numa manhã, a bebê começou a chorar e
eu corri para o berço para tentar tirá-la de lá. Eu tentei passá-la por cima das
grades, mas fiquei sem forças, não consegui segurá-la e a soltei [...] Se eu a
tivesse tirado do berço e ela tivesse caído no chão, poderia ter quebrado suas
pequenas costas [...]
A babá chegou e estava muito brava. Ela me pegou pelo pescoço, sacudiu e
disse: "Se fizer isso de novo vou bater em você até deixar seu queixo cheio de
marcas"
.
Enquanto isso estava acontecendo, o sr . Maybrick passou pela porta [...] ele
ficou furioso e disse: "Eu vi você agarrar esta criança pelo pescoço – você
poderia ter quebrado seu pescoço. Esta criança está longe de seu pai e de sua
mãe, em minha casa e sob minha proteção, e se eu ouvir você falando com ela
dessa maneira de novo vou chutá-la pelas escadas e quebrar todos os ossos
dentro de você"
.
Embora fosse apenas uma criança, Florence sentiu que havia algo errado na
Battlecrease House.
"Uma corrente de mistério parecia circular ao redor e fazia
você ter uma sensação estranha, uma sensação de que algo estava acontecendo,
mas você não entendia o que era. No jardim você podia ver as criadas
conversando num tom suprimido. Se alguém se aproximasse, elas paravam
abruptamente.
"
O elenco de personagens na Battlecrease House incluía a sra. Briggs, que
Florence lembra como "uma mulher perto da idade do sr. Maybrick, e meu pai
contou que ela era perdidamente apaixonada por ele e fez um esforço
desesperado para casar-se com ele. Mas era muito evidente que ele não
correspondia"
. Florence também descreve a babá Y app como "uma mulher
muito eficiente e capaz"
, mas também "muito falsa e traiçoeira":
Tanto a sra. Briggs como a babá Yapp desprezavam e odiavam a sra. Maybrick,
e a parte mais patética disso é que a sra. Maybrick não possuía a inteligência
para perceber a atitude delas em relação a sua pessoa [...]
A sra. Briggs possuía todo tipo de autoridade na casa e com os criados. Ela
chamava o sr . Maybrick apenas de "James"
. À mesa de jantar ouvi coisas
como: "James, você não acha que um telhado na varanda ao lado de seu
gabinete seria muito melhor [...] James, sugiro que você vista seu casaco de
chuva [...] James, um assado de porco seria ótimo para o jantar"
. Nem uma
única vez ela o chamou de sr . Maybrick.
Quando o sr . e a sra. Maybrick saíam, ela entrava em todos os quartos da casa,
incluindo o quarto do sr . Maybrick e o quarto da sra. Maybrick. Apenas um
ficava de fora – o gabinete particular do sr . Maybrick. Ele tinha um cadeado na
porta e nunca estava aberto, apenas quando ele estava lá. Nunca era limpo.
Apenas quando ele estava lá.
Entre os visitantes noturnos regulares da Battlecrease House estavam os
irmãos de Maybrick Thomas e Edwin e, menos frequentemente, Michael.
William, o irmão mais velho, aparentemente nunca o visitava, embora morasse
em Liverpool.
Michael parecia ser o cérebro da família. De acordo com Florence
Aunspaugh,
"ele possuía uma imagem pretensiosa que superava a de James em
todos os sentidos"
. Ele era solteiro em 1888 e morava sob os cuidados de uma
governanta.
Para um homem que já tinha atingido algo parecido ao status de uma estrela
como cantor e compositor, Michael permanece um enigma. Surpreendentemente,
pouco se sabe sobre sua vida profissional e pessoal; ele é pouco citado em
diários, e lembranças de seus muito celebrados contemporâneos são raras. Além
das aparições no London Ballad Concerts e nos palcos de concerto, ele era
membro do Constitutional Club e podia ser visto vestindo o uniforme da Artists
Rifles V olunteers, onde seu treinamento deve ter incluído o uso de baionetas. Ele
se alistou em 1886, aos 45 anos. De acordo com a lista de chamada, os outros
recrutas daquele ano tinham em torno de vinte anos. Será esse o motivo por que
Michael preencheu a lista dizendo que tinha quarenta anos?
Ele também havia conquistado nessa época uma posição considerável na
maçonaria, onde era membro do Ateneu e da Loja de St. Andrew, e também
fundador e primeiro chefe da Loja Orfeu para músicos. Ele ascendeu até o
cobiçado trigésimo grau do rito. Em 1889, alcançou a ainda maior posição de
organista na Grande Loja.
O historiador de música Tony Miall diz o seguinte sobre Michael Maybrick:
"Ele é uma das figuras musicais menos atraentes de seu período. Sua busca
interminável por respeito e dinheiro entra em conflito com a imagem de um
artista preocupado com sua arte. É difícil simpatizar com qualquer aspecto de
sua pessoa. Sua relação com a família e os amigos era mais formal do que
calorosa. Suspeito profundamente que o relacionamento com sua esposa era
semelhante – apenas um casamento sem amor"
.
Nos anos seguintes após o surgimento do Diário, muitas pessoas apontaram
para Michael Maybrick – existem até aqueles que acreditam que, com suas
conexões com a maçonaria e a alta sociedade, e até mesmo com a realeza, teria
sido ele, e não James, quem aterrorizou as ruas de Whitechapel, armando para
que seu irmão e sua cunhada fossem acusados. Não existe evidência real que
sustente essa intrigante ideia, mas, sem dúvida, o papel do irmão Michael na
saga miserável dos Maybrick ainda é obscuro e há muito para se descobrir.
O irmão mais novo, Edwin, era, de acordo com a impressionável Florence,
"um dos homens mais bonitos que já vi"
. Ele tinha estatura média, era formoso,
com uma aparência bem cuidada. Tinha uma voz bonita para o canto,
"melhor
até que a de Michael"
, mas não teve oportunidade para fazer melhor uso dela.
Aos 37 anos, era solteiro.
O Diário cita repetidamente o ciúme de James em relação a Michael, a quem
ele chama de "o irmão sensato"
.
A filha de Edwin, Amy, reconheceu muitos anos mais tarde que seu pai "não
amarrava os sapatos sem consultar Michael"
. Mas James era mais ligado a
Edwin, com quem trabalhou e de quem sentia saudades quando estava longe.
Não seria surpresa se Florie buscasse consolo com seu cunhado. Rumores sobre
os sentimentos de Florie vinham circulando por algum tempo na Bolsa do
Algodão. Havia até suspeitas de um caso entre eles. A fofoca entre os criados
após a morte de Maybrick dizia que muitas cartas de Edwin para Florie foram
encontradas. John Aunspaugh contou à sua filha que Michael destruíra essas
cartas. Porém, ela se lembra de um incidente contado por seu pai que justificava
essa suspeita:
A primeira indicação que meu pai teve sobre haver algo errado por lá aconteceu
na noite do jantar de gala. Havia vinte casais, e, é claro, uma mesa longa foi
necessária. As conversas aconteciam em grupos. O sr . Edwin ficou perto da sra.
James Maybrick, e eles riam e conversavam. Meu pai olhou para o sr . James e,
enquanto o fez, ouviu a sra. Maybrick dizer a Edwin, rindo, que "se eu tivesse
conhecido você primeiro, as coisas poderiam ter sido diferentes"
.
Poderia ter sido uma brincadeira inofensiva. Mas o sr . Maybrick levou a sério.
Ele baixou sua faca, apertou o punho e seu rosto ardeu em tons de vermelho.
Num segundo, ele recobrou a postura, levantou sua faca e tudo voltou ao
normal.
Enquanto Florence Aunspaugh e Bobô brincavam no lago e corriam pelos
canteiros de flores, uma tormenta estava prestes a desabar e a engolir a todos.
Até aqui, tudo é fato. O que aconteceu a seguir com os Maybrick também é
fato. Mas de agora em diante eles podem ser vistos de uma nova perspectiva – a
do Diário. O enigmático papel do Diário nessa história permanece não
solucionado, mas nosso entendimento sobre sua importância tem aumentado
enquanto novos materiais surgem. As percepções estão sempre mudando.
Algumas crenças iniciais já foram descartadas, outras se provaram corretas. Ao
contar a história, observei pelos escritos do autor do Diário os eventos históricos
de Whitechapel que precederam a morte de James e o julgamento de Florie.
Afinal de contas, esta é a primeira vez em cem anos que temos um documento
desse tipo. Meu objetivo tem sido entender o quão convincente é a explicação do
Diário sobre os mistérios de Jack, o Estripador. Ainda existem questões não
respondidas, mas, para mim, o peso das evidências aponta apenas para uma
conclusão. O Diário foi escrito por James Maybrick. A aceitação desse fato
esclarece muito sobre a confusão ao redor dos assassinatos de Whitechapel e
torna possível uma nova interpretação dos trágicos eventos de 1888/1889.
4
Às vezes sinto uma compulsão irresistível
de colocar meus pensamentos no papel
O pub Poste House, na Cumberland Street, perto das docas de Liverpool,
pouco mudou desde 1888, quando a fama de seu almoço percorria longas
distâncias. As pessoas ainda lotam o pequeno e escuro bar de teto verde e
paredes vermelhas cobertas por pesadas cortinas. O príncipe Luís Napoleão
bebia lá. E também James Maybrick, como a princípio nos revela o Diário:
Tomei um refresco no Poste House e foi lá que finalmente decidi que há de ser
Londres. E por que não, não é um local ideal? De fato, eu visito a capital com
frequência, e realmente tenho razão legítima para fazê-lo. Todas aquelas que
vendem seus artigos sujos irão pagar , disso não tenho dúvida. Mas devo eu
pagar? Penso que não. Sou esperto demais para isso.
Não muito longe do Poste House ficava o então elegante centro comercial de
Whitechapel. Naqueles dias, o centro não chegava nem perto do que era seu
homônimo de Londres. Foi nessa rua, no ano de 1888, que o Diário relata
Maybrick vendo Florie com o homem que acreditava ser o amante dela. Seu
nome nunca é mencionado no texto – ele é descrito como "o cafetão"
, e Florie
não é mais sua "querida coelhinha"
, mas "a cadela" ou "a puta"
.
Só algum tempo após minha primeira visita ao Poste House, em 1992, fiquei
completamente ciente dos conflitos e das contradições que o Diário me
apresentaria. Afinal, no trecho citado, em um único parágrafo, há duas
afirmações – a primeira, que cita o Poste House, iria eventualmente lançar
dúvidas sobre a autenticidade do relato; e a segunda, que faz referência às
conexões de Maybrick em Londres, iria dar suporte à sua autenticidade de
maneira dramática!
Durante nossa visita a Liverpool, encontramos Roger Wilkes, na época um
dos roteiristas da BBC, que apresentou um programa sobre Michael Maybrick e
generosamente nos deu acesso a seu material de pesquisa. Foi Roger quem
primeiro apontou um problema no trabalho.
"O Poste House não era chamado
Poste House em 1888"
, ele disse!
É comprovadamente sabido que em 1888 a construção hoje chamada de Poste
House era afetuosamente conhecida como "The Muck Midden"
. Em 1882, ela
era chamada de "The Wrexham House"
, mas nos registros de cervejarias de
1888/1889 nenhum desses nomes foi mencionado; A. H. Castrell e Walter
Corlett aparecem como os responsáveis pelo local.
Ficamos sabendo através dos donos do Poste House que eles compraram o
estabelecimento da cervejaria Boddingtons, que por sua vez o comprou da
cervejaria Higsons. A Higsons o adquiriu das famílias Gartside e Gibson. E, só
para irritar, a Escritura de Anuidade de 1848, assinada por Abraham Gartside e
Richard e Betty Gibson faz referência à "propriedade na Cumberland Street,
anteriormente um depósito e hoje um pub sob o nome de ...
"
. Mais uma vez, o
nome estava faltando!
Foi apenas nos anos 1960 que se decidiu modernizar o então decadente
estabelecimento e rebatizá-lo "Poste House"
.
Logo nas primeiras semanas parecia que tínhamos encontrado um problema.
Seguimos explorando a história do Correio Britânico, de pubs e de agências de
correios para tentar achar outra solução. Seria o Poste House – que em inglês
antigo significa "agência de correio"
– algum outro lugar? Buscamos a ajuda de
vários historiadores locais, como Gordon Wright, da Inn Sign Society (uma
sociedade que estuda placas e letreiros de pubs históricos), e Dick Daglish, que é
especialista na história dos pubs de Liverpool. Descobrimos que as agências de
correio eram apenas lugares onde a correspondência era coletada ou postada, e
que raramente possuíam placas de identificação. O termo poderia ter sido
empregado para se referir a inúmeros pubs ou cafeterias, como o George, o Red
Lion, ou o White Hart, lugares que não eram, necessariamente, estabelecimentos
importantes.
Também descobrimos que a principal agência de correio de Liverpool,
provavelmente inaugurada no ano de 1753 na Water Street, aparentemente
mudava de endereço com frequência. Em 1839, um ano antes do nascimento de
Maybrick, o "The Old Post Office" ficava situado na Church Street, logo na
esquina da casa da família.
"Hoje é um trabalho exaustivo de esconde-esconde [...] encontrar seu
paradeiro"
, escreveu J. James Hewson, num artigo do jornal de Liverpool em
1899 – ano em que a quinta principal agência de correio finalmente foi
inaugurada. Em 1904, o edifício conhecido como Muck Midden se tornou o
"The New Post Office Restaurant"
.
Existe atualmente um pub no cruzamento da Church Alley com a School Lane
chamado de Old Post Office. O dono, George Duxbury, contou ao meu editor,
Robert Smith, que o pub fazia parte dos antigos edifícios do Correio Britânico, e
funciona pelo menos desde 1840, quando era um movimentado albergue. Os
estábulos, cujos paralelepípedos ainda existem, davam para a Hanover Street, a
principal via pública que passava pela, então, nova agência de correio. Atrás do
pub ficava uma outra agência, mais antiga – de onde veio a inspiração para seu
nome. O Old Post Office fica próximo à estação Central, onde Maybrick tomava
o trem para Aigburth; também fica perto da Church Street e de Whitechapel, e
poderia ser um forte candidato ao Poste House do Diário.
Porém, outra ideia estava crescendo em minha mente. Talvez o Poste House
não ficasse realmente em Liverpool – o Diário não o localiza claramente. Entre
os papéis que Roger nos entregou, estava uma lista dos arquivos de Maybrick no
Escritório de Registros Públicos do distrito de Kew. Eles foram recentemente
abertos para pesquisa geral, após cem anos. Pouco tempo depois, Sally Evemy e
eu fizemos nossa primeira visita a esse vasto edifício que abriga muitos dos
registros históricos do país – registros sobre guerras, transportes, carreiras
militares, papéis do governo, mapas, horários. Pedimos pelas "caixas de
Maybrick"
, sem saber o que esperar, e as recebemos através do "paternoster"
–
um tipo de elevador que carrega documentos de dentro dos cofres.
Cautelosamente, olhamos dentro do pacote cheio de frágeis papéis e cartas
velhas e quebradiças, todas numeradas e amarradas com uma fita vermelha. De
fato, poucas pessoas olharam esse material antes de nós. Quem sabe o que
poderíamos encontrar?
Nós retornamos várias e várias vezes, sempre encontrando novos trechos de
informações úteis. Em uma dessas ocasiões, muito tempo depois de nossa
primeira visita, prestamos atenção em uma carta que não pareceu importante em
nossas buscas iniciais. Essa longa carta, nunca publicada, foi enviada em 1889
por Gustavus A. Witt, um colega de Maybrick, ao ministro do Interior, Sir Henry
Matthews, e possui uma afirmação interessante:
4, Cullum Street
Londres E.C, 29 de agosto de 1889
Senhor , embora esteja sem dúvida cansado do infeliz caso Maybrick, permita-
me, como um dos mais íntimos amigos do falecido sr . James Maybrick (ele fora
meu parceiro em Liverpool até 1875 e continuou a tratar dos negócios de minha
firma em Londres até o momento de sua morte)[...]
Outro enigma! Witt quis dizer que Maybrick fazia seus negócios em Liverpool
ou em Londres? Maybrick ainda trabalhava para ele na época dos assassinatos
em Whitechapel. Dessa forma, nossa atenção voltou-se para Londres – mas,
apesar de todas as horas vasculhando os arquivos do Correio e pesquisando nos
diretórios de ruas, buscando por cafeterias ou por estabelecimentos que
servissem refrescos que pudessem ser o Poste House, não encontramos nada.
Mais adiante no Diário, há uma grafia que me intriga; a expressão "post
haste"
, que quer dizer "com pressa, urgência"
, está incorretamente grafada como
"poste-haste"
. A frase "Haste post, haste" era uma instrução famosa para os
carteiros na era vitoriana, escrita nos envelopes para indicar a necessidade de
urgência na entrega. A palavra "post" não possui a letra "e"
. Poderia a grafia
"Poste House" simplesmente refletir a ignorância de Maybrick?
O arquivo sobre o Post(e) House permanece aberto em meu gabinete – é um
quebra-cabeça não resolvido no centro de uma crescente montanha de provas.
V oltei a acreditar em minha ideia inicial de que o Diário poderia estar correto, já
que não existe nenhum registro do nome oficial do Muck Midden.
Seja lá onde o Poste House fosse localizado, o Diário é claro sobre aquilo que
acontece em seguida. Enfraquecido por sua saúde debilitada, pela dependência
de drogas e pelo banimento da cama de Florie, Maybrick se tornou loucamente
ciumento. Foi, sem dúvida, a amizade crescente com Brierley que cultivou a
semente para o assassinato. Maybrick tinha um motivo. Agora ele precisava de
um local.
Eu disse que seria Whitechapel então Whitechapel será. [...] Whitechapel
Liverpool, Whitechapel Londres, ha ha. Ninguém poderia juntar as peças. E sem
dúvida não há razão para alguém fazê-lo.
No Diário há um trecho, provavelmente escrito em março de 1888, referente a
uma carta do irmão de James, Thomas, pedindo que se encontrassem em
Manchester, onde Thomas vivia no subúrbio de Moss Side. Ele era o gerente da
empresa Manchester Packing Company. Maybrick aparentemente aceitou o
convite, embora sua mente já estivesse ocupada com assuntos que iam além dos
negócios.
O tempo está passando devagar demais. Ainda preciso desenvolver a coragem
para começar minha campanha. Pensei muito e com afinco sobre o assunto, e
ainda não consigo chegar a uma decisão de quando devo começar . A
oportunidade está lá, estou certo disso [...]
Meu remédio está me fazendo bem, na verdade, tenho certeza que posso tomar
mais do que qualquer pessoa viva.
[...]
Viajarei amanhã até Manchester . Tomarei um pouco do meu remédio e pensarei
bastante no assunto [...] V ou me forçar a não pensar nas crianças [...].
Assim como Maybrick usou Michael e Witt como "desculpa" para suas
viagens a Londres, também Thomas ofereceu uma razão para a viagem de
negócios a Manchester. O trem saía direto da estação Aigburth, e a viagem
durava pouco mais de uma hora. Foi lá, em Manchester, que o Diário sugere que
Maybrick tentou seu primeiro assassinato.
Meu querido Deus, minha mente está enevoada. A puta está agora com seu
criador , que a recebe de braços abertos. Não houve prazer enquanto eu
apertava. Não senti nada. Não sei se tenho coragem de voltar para minha ideia
original. Manchester estava fria e úmida, igual a este buraco do inferno. Na
próxima vez jogarei ácido nelas.
De acordo com David Forshaw, tal comportamento "experimental" é comum.
Estudos sobre vários pacientes psicopatas os mostram preocupados com
fantasias sexuais sádicas.
"Com o tempo"
, ele explica,
"essas fantasias se tornam
mais extremas e eles começam a realizar partes delas [...] Por exemplo,
seguindo as vítimas em potencial"
.
Se o dr. Forshaw estiver certo e o assassinato de Manchester tiver sido um
"experimento" que não proporcionou prazer a Maybrick, isso explicaria o fato de
que no Diário ele se refere apenas ao único aspecto dos assassinatos que
realmente o excita – cortar e estripar.
Os registros da polícia estão incompletos, os registros dos médicos legistas
foram destruídos e, até agora, não descobrimos nenhuma pista desse primeiro
assassinato, em fevereiro ou março de 1888. Henry Mayhew, em seu clássico
livro London Labour and London Poor (publicado pela primeira vez em 1851 e
reimpresso várias vezes), estima que havia cerca de 80 mil prostitutas
trabalhando apenas em Londres, e um estrangulamento em Manchester não
mereceria mais do que uma simples investigação de rotina. Até mesmo o cruel
assassinato de Emma Smith, que foi mutilada em Londres em abril de 1888, não
foi amplamente divulgado.
No ataque de Manchester, o autor do Diário age inteiramente como o esperado
de um serial killer em potencial. Mas se o Diário foi forjado, o autor deixou
cascas de banana em seu próprio caminho ao se atrever a misturar fato e ficção
em sua história.
Desde o início, Maybrick sente-se forçado a registrar no papel seus
pensamentos e ações. David Forshaw diz que sua linguagem é a de um homem
em um jogo, perversamente dando confiança a si mesmo ao fingir ser menos
esperto do que realmente é. Ele parece ter um prazer mórbido em distorcer a
gramática, em registrar vícios de linguagem e jogos de palavras.
Não é incomum que pessoas inteligentes, porém inseguras, adotem uma
personalidade menos educada no papel. Existem muitos erros de grafia,
gramática e pontuação que parecem não fazer parte dos jogos de palavras do
Diário. Mas embora possam muito bem fazer parte da personalidade menos
culta que Maybrick adotou, esses erros podem também ser de fato resultado de
uma escolarização modesta, já que se trata de um homem que se desenvolveu
sozinho e não tinha pretensões com o aprendizado.
Toda a empreitada era perigosa, é claro, e provavelmente Maybrick escreveria
na segurança de seu escritório, longe dos olhos curiosos de sua família e dos
criados. Depois de vários trechos, ele fala sobre "retornar"
, presumivelmente
para a Battlecrease House, e a partir daí não há nada que contradiga a ideia de
que todo o Diário foi escrito no Edifício Knowsley. Mesmo lá, Maybrick teria
que ser extremamente cauteloso para proteger seu segredo de George Smith, seu
escriturário, ou de Thomas Lowry, seu jovem empregado.
Estou começando a acreditar que não é sensato continuar a escrever . Se irei
abater uma puta, então nada deve conduzir os persegidores1 até mim, e mesmo
assim às vezes sinto uma compulsão irresistível de colocar meus pensamentos no
papel. [...] Se Smith descobrisse isto, então eu estaria acabado antes de
começar minha campanha. Porém, o prazer de escrever sobre tudo o que está
para acontecer [...] me excitam muito. E, oh, as coisas que farei. Como alguém
suspeitaria de que eu seria capaz de tais coisas, afinal não sou, como todos
acreditam, um homem compassivo, que já foi declarado como alguém que nunca
machucaria uma mosca?
Em 1888, Thomas Lowry, o empregado de dezenove anos de idade, filho de
um sapateiro, trabalhava na empresa Maybrick and Co. já havia cinco anos. Ele
não teve qualquer participação na vida pessoal de seu empregador, pelo menos
ao que se sabe.
Sua participação como testemunha de acusação no julgamento de Florie foi
curta e não revelou nenhuma pista sobre sua relação com Maybrick. Mais uma
vez, então, o Diário entra no perigoso reinado da ficção, descrevendo eventos
aparentemente históricos, mas que qualquer bom pesquisador poderia
desmerecer com fatos. A sra. Hammersmith é outro exemplo. O Diário faz duas
referências a uma sra. Hammersmith, mas na segunda ocasião o nome não está
claro e parece ter uma grafia diferente. Quem seria a misteriosa sra.
Hammersmith que Maybrick diz ter "encontrado" no caminho de entrada de sua
casa?
Hammersmith é um sobrenome muito incomum. Não encontramos nenhuma
pessoa com esse sobrenome nos diretórios de ruas da época. Achamos apenas
um exemplo no livro The Suicide Club, de Robert Louis Stevenson, que
menciona um major Hammersmith.
Se esse documento não tiver sido escrito por Maybrick, então seu autor mais
uma vez está escrevendo usando apenas a imaginação. Há um episódio
dramático com Lowry que, de modo semelhante, também não foi possível
comprovar em nenhum jornal ou livro. É um acontecimento marcante, que nos
deixa querendo saber mais. Sua própria simplicidade é convincente. Um falsário
ficaria tentado a embelezar este trecho.
Se pudesse ter matado o bastardo do Lowry com minhas próprias mãos naquele
instante, eu o teria feito. Como ele se atreve a me questionar sobre qualquer
assunto, sou eu quem deveria questioná-lo. Maldito maldito maldito. Devo
substituir os itens que estão faltando? Não, isso seria muito arriscado. Devo
destruir isto? Meu Deus, vou matá-lo. Não dar nenhuma explicação e mandar
que ele esqueça o assunto rapidamente,
2 acredito que esse é o único caminho
que posso tomar . V ou me forçar a pensar em algo mais agradável.
Seja lá o que o jovem Lowry tenha dito ou feito, isso o colocou em um perigo
maior do que imaginava. Ele parece saber muito mais do que deveria. Mas
exatamente o que ele sabia? Seja lá o que fossem os "itens que estão faltando"
ou o "assunto" em questão, a participação de Lowry é totalmente convincente.
Por um segundo, a porta do escritório da Maybrick and Co. está entreaberta, e
nós podemos ter um vislumbre de um lado sombrio da personalidade de
Maybrick – um lado que a imprensa faminta de escândalos nunca divulgou.
Seria o mesmo James Maybrick que a pequena Florence Aunspaugh viu ameaçar
a babá Y app, nunca revelado até que ela se tornasse idosa?
Havia uma linha regular de trem que saía de Liverpool para as estações
Euston e Willesden Junction, em Londres, e a viagem durava cerca de cinco
horas. Quando estava na capital, James às vezes ia até o elegante Regent's Park,
onde ficava com seu irmão. Os vizinhos de Michael na Wellington Mansions
incluíam um editor, um artista, um editor de altas artes, três comediantes e
Arthur Wing Pinero, o famoso dramaturgo.
Maybrick não ficava relaxado na presença de seu arrogante e convencido
irmão mais novo, mas os aposentos no Regent's Park eram confortáveis e
convenientes, e constituíam uma base para visitar o amigo de Michael, o dr.
Charles Fuller, em sua infinita busca por remédios.
Irei visitar Michael em junho próximo. Junho é um mês tão agradável, as flores
se abrem completamente, o ar é mais doce e a vida é quase certamente mais
rosada. Anseio por sua chegada com prazer . Com muito prazer .
Junho, que ele tanto esperava, começou frustrante, com tempo chuvoso e
instável, mas ao final do mês uma onda de calor levou Liverpool a um
racionamento de água. O comércio não estava mal –
"estável, mas vagaroso"
,
como descreveram os jornais da época.
De acordo com o Diário, James foi visitar Michael pensando em iniciar sua
"campanha"
, mas algo deu errado. Ele não estava pronto; não havia planejado o
suficiente, embora o desejo de atacar estivesse se tornando quase impossível de
controlar. De fato, ele foi forçado a usar Michael como seu carcereiro.
Como consegui controlar a mim mesmo eu não sei. Não levei em consideração a
substância vermelha, litros dela, segundo minha estimativa. Uma parte disso
deve espirrar em mim. Não posso permitir que minhas roupas fiquem
encharcadas de sangue, isso eu não poderia explicar para ninguém, menos
ainda para Michael. Por que não pensei nisso antes? Eu amaldiçoo a mim
mesmo. A luta para me segurar foi avassaladora, e se eu não tivesse pedido a
Michael que me trancasse em meu quarto por medo de sonambulismo, coisa que
disse estar acontecendo recentemente comigo, isso não foi esperto?, eu teria
feito meu trabalho sujo naquela mesma noite.
É inconcebível que Michael pôde, mais tarde, testemunhar quase sozinho que
nunca havia visto James usando drogas, nem sabia de seu hábito. Por razões que
só ele conhecia, Michael provavelmente estava escondendo aquilo que sabia ser
a verdade.
Sabemos por meio das evidências médicas do julgamento de Florie que seu
marido estava em um estado crescente de pânico sobre sua saúde naquele mês de
junho, e isso também fica evidente no Diário. Sua hipocondria habitual
alimentou um desejo de atenção médica e o abuso de medicamentos. Entre junho
e setembro, ele fez cerca de vinte visitas ao dr. Arthur Hopper, o médico da
família, na Rodney Street. Reclamou de dores violentas na cabeça que haviam
começado em junho, na época da corrida de Royal Ascot, e de dormência em
seus pés e pernas.
Se tivesse as vantagens da ciência moderna, o dr. Hopper teria percebido que a
saúde de seu paciente estava em uma condição crítica. Mas o médico estava
cético, sem paciência para a hipocondria de Maybrick, e também irritado por seu
paciente se automedicar com remédios recomendados por amigos. Um dos
medicamentos, o xarope Fellow's, continha arsênico, estricnina, quinina, ferro e
hipofosfi-tos. Maybrick também dobrou a dose das prescrições do dr. Hopper
quando sentiu que elas não estavam mais fazendo efeito. O doutor o avisou de
que ele "causaria um grande prejuízo a si mesmo"
.
Pílulas de estricnina eram vendidas formalmente para uma variedade de
propósitos medicinais, principalmente como um tônico ou como afrodisíaco. De
acordo com médicos da Unidade de V enenos do Hospital Guy, em Londres, os
efeitos a longo prazo nunca haviam sido estudados. Hoje, pílulas contendo
estricnina não são mais vendidas e são consideradas ineficazes e perigosas. A
substância, porém, é usada ocasionalmente para "cortar" ou aumentar o efeito de
drogas como as anfetaminas. Sua presença no organismo pode resultar em
excesso de atividade neural, embora, sob rígida supervisão médica, auxilie no
tratamento de impotência, entre outros males.
James Maybrick usava pílulas de estricnina de modo irresponsável, ingerindo-
as como se fossem doces. Certa vez, Maybrick entregou ao dr. Hopper algumas
prescrições feitas para ele pelo dr. Seguin, em Nova Y ork, cidade pela qual ele
passava de vez em quando a negócios. Eram para estricnina e nux vomica, um
remédio popular na era vitoriana, baseado em estricnina e que também era usado
como afrodisíaco.
O dr. Hopper destruiu as receitas.
"Eu considerei que ele estava seriamente
deprimido"
, disse no julgamento de Florie, explicando que isso significava que
Maybrick "dava importância demais a sintomas insignificantes"
.
Na Páscoa, a família tirou férias no Hand Hotel, localizado no País de Gales, e
em julho, por sugestão do doutor, Maybrick foi se tratar nas águas do Harrogate
Spa, em Y orkshire. Ele se hospedou no Queen Hotel, um estabelecimento
modesto, e seu nome foi devidamente registrado no "Livro de Visitas"
, uma
coluna regular do jornal local, o Harrogate Advertiser. Permaneceu lá, sozinho,
por quatro dias.
As corridas de Goodwood no começo de agosto eram um evento social
imperdível para os Maybrick. Eles viajaram juntos para a pista de corridas
gloriosamente situada em Sussex, onde encontraram John Baillie Knight, um
amigo de infância de Florie, e suas tias Margaret e Harriet Baillie, amigas da
baronesa. Depois, todos jantaram juntos na Exibição Italiana, em Kensington,
Londres.
As senhoras Baillie, que possuíam bens e instalações industriais em Londres,
conheceram a baronesa e sua filha em um pequeno hotel na Suíça. Florie ficou
com elas várias vezes quando criança, e elas visitaram Liverpool depois de seu
casamento. Mais tarde, contaram a seu sobrinho que notaram algo errado com os
Maybrick. John e Florie não se encontraram novamente até 1889, mas ela
escreveu para ele várias vezes e confidenciou sua infelicidade com as traições do
marido.
Tais detalhes domésticos são pouco descritos no Diário, que se concentra
apenas no progresso implacável de sua campanha de terror. Pensamentos de
morte e um pouco mais deixavam Maybrick obcecado e o levaram a usar o papel
como confessionário.
No dia 6 de agosto – uma segunda-feira de feriado bancário – enquanto
Maybrick estava no sul com Florie, uma prostituta, Martha Tabram, foi
assassinada em Whitechapel, Londres. Ela havia saído à noite para beber e
procurar clientes. Às 4h50 da manhã seguinte, foi encontrada em uma poça de
sangue no primeiro andar do Edifício George Y ard. Havia levado 39 facadas,
principalmente no peito, estômago e genitais.
Muitos especialistas do Estripador acreditam que Martha foi assassinada por
um soldado não identificado – o recruta da Guarda que foi seu último cliente.
Mas a imprensa e a polícia decidiram que ela e Emma Smith, morta em abril em
uma também segunda-feira de feriado bancário, foram vítimas do mesmo
homem. Quando o terror começou realmente naquele outono, eles ligaram
Martha Tabram e Emma Smith aos assassinatos de Whitechapel realizados por
Jack, o Estripador. Na época, o público acreditava que todos os crimes haviam
sido cometidos pelo mesmo maníaco.
Em algum momento durante o mês de agosto, muitas semanas após sua última
visita a Michael, Maybrick retornou a Londres. Mas, dessa vez, o Diário revela
que ele alugou um quarto em Whitechapel.
1 No Diário, Maybrick "erra" a grafia da palavra pursuer, escrevendo "persuers 2 "Poste haste"
, no original. (N. T.)