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Depois do odor fétido, a chegada da morte era quase sempre inevitável... ela sabia.

Maitê também sabia que aqueles sons em seus tímpanos, os mesmos que nenhuma alma viva naquela avenida parecia escutar mas que para seus ouvidos tornaram-se ensurdecedores ao longo dos anos, eram o prenúncio do que inevitavelmente aconteceria com ela e com qualquer ser que um dia nasce; devorados por pequenas criaturas que surgem em meio à morte. Seres que rastejam preguiçosamente, comendo, crescendo, vivendo.

Ela ouvia tudo isso. Todos os ovos eclodindo, todas as mordidas e até mesmo a digestão.

E mais um pouco.

Diferentemente do cheiro, pois carne podre fede do mesmo modo em todos os cadáveres, os sons de sua morte eram particulares, únicos. Os murmúrios e lamentos exprimiam parte da história de como a vida os deixou. Era sufocante. Era real. E era como se Maitê morresse de diversos jeitos diferentes em uma só vida. Como naquele momento: o som engasgado de uma tentativa de respiração fazia sua garganta pinicar, quase como se viesse dela. Ainda que puxasse o ar profundamente e percebesse que não lhe faltava oxigênio, a sensação nunca passava. Talvez por temer que, um dia, deixasse de ser apenas uma sensação e se tornasse uma experiência vívida.

A garota parou no meio do caminho, as mãos fechadas em punho. Seu coração parecia um buraco pulsante, engolindo seu ar e o desejo de sair dali correndo o mais rápido que conseguisse. Seus pés estavam colados ao chão e a fuga era uma ideia cada vez mais distante.

Havia muitas pessoas ali, trombando em seus ombros e a amaldiçoando por estar parada no meio da Paulista em pleno domingo à tarde. Apesar dos praguejos constantes direcionados a ela, no entanto, Maitê desejou do fundo do coração ser uma delas: apressada, alheia, sem desistir de seus planos apesar da morte... apesar da mulher morta a poucos centímetros.

O hálito gélido tocava em seu rosto e em alguns cachos de seu cabelo. A boca estava totalmente aberta, buscando migalhas de oxigênio, e seus dedos com unhas tão grandes quanto corpo-seco arrastavam-se por seu pescoço roxo, coberto de hematomas. Os olhos, opacos e desprovidos de vida, encaravam-a vigorosamente e havia tanto terror e tanto furor... Maitê sentiu-se tonta. As mãos suavam, a cabeça parecia mais pesada do que lembrava e não conseguia sentir a ponta dos dedos.

Ela sabia o que a mulher estava tentando fazer. E não deixaria.

Deu alguns passos para trás. Virou-se de costas e andou na direção contrária, fincando as unhas nas pontas dos dedos a fim de recuperá-los, de trazê-los de volta a si.

- Eles são meus, - ela dizia incessantemente. - ela não pode pegar. Eles são meus. E minhas pernas, meus pés, meu coração e minha alma. São todos meus.

Escorregou a mão até a bolsa e tirou uma cartela de diazepam. Engoliu dois. Acendeu um cigarro enquanto caminhava para longe daquela mulher.

É tudo meu. Minha pele, meu cabelo, minha boca, minhas tripas. O ar que respiro é meu e de mais ninguém.

Deu a primeira tragada ao virar em uma viela.

E então, mãos agarraram seu pescoço.

O cigarro caiu por entre seus dedos e suas costas bateram na parede atrás de si. A pressão na garganta fechou sua traquéia e ela arregalou os olhos, finalmente entendendo que aquela mão gelada e as unhas afiadas rasgando a pele de seu pescoço não eram de um ser vivo.

- Eu quero... - a mulher sussurrou, a voz em um tom rasgado. - Eu quero...

A força de seus dedos em volta do pescoço de Maitê aumentava a cada palavra proferida. Em desespero a garota tentou puxar o ar, mas tudo o que teve foi um gemido sôfrego e sufocado. Bateu nos braços da morta, arranhou e se debateu sob seu aperto. De nada adiantou.

E então, a dormência começou pelas pernas. Já não conseguia mais comandá-las totalmente e os músculos formigavam.

- Eu quero - desta vez, a voz da mulher soou mais alta do que o sussurro proferido anteriormente.

- Não... - o pânico ferveu seu sangue e embrulhou seu estômago. - Não, por favor... - disse com dificuldade.

Meu corpo é meu. Meu suor é meu. Meu sangue é meu...

Mas estavam cedendo a ela.

Maitê era o canal. A luz dos insetos, os raios quentes do dia para um defunto. Era a chance de eles voltarem a viver por algum tempo, a porta de entrada entre os dois mundos.

Se perdesse essa luta, nada lhe pertenceria mais. Nem mesmo seu próprio corpo.

Sem forças para resistir somente com sua consciência, Maitê recorreu à única saída disponível naquela situação. Inclinou a cabeça para frente e, em um impulso movido pelo pavor, jogou-a para trás. O impacto na parede soltou farelos de tinta e, de repente, tudo ficou embaçado. A dor era lancinante, o tipo de dor impossível de se aturar com a consciência desperta.

No entanto, foi naquela dor que Maitê agarrou-se e permitiu-se sentir. Pois no minuto seguinte, não eram dedos gélidos e hostis enforcando seu pescoço, e sim mãos cobertas de sangue circulante quente e cheio de vida em seus braços.

- Moça, o que aconteceu? Você está bem? - uma voz feminina chamou.

- Eu estou... - um tropeço e a mulher a segurou. - estou bem.

- Você está sangrando. - ela disse. - Melhor ir ao hospital.

- Não. Eu estou bem.

Levou a mão à cabeça. Os dedos voltaram manchados de sangue.

Desvencilhar-se da mulher pareceu uma tarefa extremamente difícil. Estava tonta e a dor a obrigava a manter os olhos fechados, como se por algum milagre aquilo fizesse-a diminuir.

Não diminuiu.

E ela não se importava.

Não se importava porque, agora, os dedos que antes não sentia finalmente doeram depois dos beliscões. E as pernas, que não lhe obedeciam, agora levavam-na para longe do cheiro que já começava a circular outra vez por suas narinas. Era distante, fraco, mas estava ali.

Maitê torceu para que não a seguisse.

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