três

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Em algum momento ela teria de entrar. Samuel já estava dentro da casa a esperando, mas Maitê estava congelada na entrada, sem conseguir dar o primeiro passo. Sentia a mandíbula travada, os dentes pressionando uns aos outros e as mãos suando frio.

Havia um carro atrás de si. Ele era grande e parecia forte o suficiente. A garota deu dois passos para trás e virou-se de costas para a casa. Abriu a porta, entrou no banco do motorista, colocou o cinto e deu partida. Engatou a ré antes de acelerar. O som agudo que o carro produziu enquanto Maitê afastava-se metros e mais metros produziu calafrios de antecipação em seu corpo, e ela sorriu. Então freou, engatou a primeira marcha e rodou o volante na direção em que queria.

Acelerou.

Os muros da frente da casa cederam com o impacto. Seu tronco foi lançado para frente e a pressão do cinto segurando-o foi, de uma forma muito doentia, prazerosa. Se aquela foi a dor que sentiu com o impacto, imagina a da casa? Era isso que queria. Que aquela casa sofresse. Que ruísse. Que morresse.

— Você vai entrar? — escutou a voz de Samuel do lado de dentro.

O carro ainda estava estacionado atrás de si. Os destroços voltaram a ser um muro rígido, com alicerces muito bem estruturados e seguros, talvez ainda mais resistentes que anos atrás. A porta ainda estava aberta. E ela ainda precisava entrar.

— Droga de pensamentos intrusivos — praguejou.

Engoliu um nó na garganta e respirou fundo antes de dar o primeiro passo. E, a cada centímetro adentro, repetia para si mesma:

É só uma casa.

É só uma casa.

É só uma casa.

Passou pelo pequeno jardim na entrada. As flores tinham a mesma aparência: coloridas, frescas, bem cuidadas. Havia azaleias, margaridas, dentes-de-leão. Borboletas, abelhas e joaninhas pousavam ali o tempo todo no passado, disso Maitê se lembrava bem. Principalmente da ferroada que levara logo na primeira vez em que estivera ali; ainda tinha a marca no dorso da mão, entre o indicador e o dedão. A garota chegou nos dois degraus que levavam a uma pequena varanda, com duas cadeiras de balanço. Procurou não olhar muito para elas. Não queria ter outros pensamentos intrusivos.

A porta estava ali, escancarada, pronta para devorar Maitê em seu interior. Seu estômago estava revirando de uma maneira que ela nunca achou ser possível. Mas aquele era um dos momentos da vida, ela sabia, que um adulto teria de enfrentar algo ruim para se livrar de algo muito pior — como trabalhar para não morrer de fome. 

Seus olhos estavam fixados em seus tênis quando entrou. O que os olhos não veem o coração não sente, era o que diziam, mas o que acontecia com a mente e a alma e a droga do estômago que ainda não havia parado de rodar?
Sentou na primeira poltrona que encontrou. Encolhida, como um bicho assustado. Detestava se sentir assim. Detestava parecer uma maluca, uma paranóica, exatamente porque um dia já fora chamada assim. E talvez porque realmente fosse. 

Maitê precisava de um cigarro. 
Enfiou a mão na jaqueta, prestes a pegar um maço. Não havia ao menos tirado um centímetro de seu interior quando ouviu:

— Aqui não.

Foi a primeira vez que levantou a cabeça desde que entrara, seus olhos pousando diretamente no garoto sentado na poltrona à sua frente. Agora ele devia ter por volta de seus vinte e dois ou vinte e três anos. Estava mudado: da última vez que o vira, era um pré-adolescente franzino com sérios problemas de socialização. Agora, parecia mais forte, mais maduro, tinha até mesmo uma barba rala na mandíbula. Os olhos castanhos ainda tinham o mesmo tom do cabelo, que deixou de ser longo devido a era emo-gótico-das-trevas (literalmente das trevas), e adquiriu um corte curto e estiloso. Maitê não teria o reconhecido se o tivesse visto de relance na rua, em algum momento aleatório de suas vidas. No entanto, era preciso apenas um olhar um pouco mais vagaroso que as lembranças viriam na hora: o sorriso meigo, os olhos doces, as covinhas marotas; tudo ainda estava ali.

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