Capítulo 2- Pedras

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Hoje foi mais um dia que começou depois da arrumação geral que a nossa casa teve que passar. As crianças começaram a sentar-se à mesa para as suas orações normais. David, bem, David, contra a sua vontade, também se sentou, mas segurou nas mãos dos seus filhos, exceto Tomé, que já estava acordado há muito tempo e já tinha tomado o seu cerelac. A família estava reunida naquele momento, com cada um cumprindo o seu papel na rotina matinal. Enquanto o pão fresco era pendurado na porta pelo padeiro da aldeia, eles aproveitavam para conversar sobre o início do outono e as primeiras chuvas que começavam a cair. A casa continuava serena e tranquila, como se estivesse pronta para abraçar os desafios do novo dia. A família unida mostrava o amor e a dedicação que tinham uns pelos outros. Mesmo que David não estivesse tão animado quanto os outros membros da família naquele momento, ele sabia que tinha um papel importante em manter todos juntos.

— Senhor, abençoai o precioso alimento que colocais na nossa mesa, que ele nunca nos falte. Mas, principalmente, não nos falte o vosso corpo, que é santíssimo, e o vosso sangue, que é preciosíssimo - o alimento e a bebida que nos conduzem à vida eterna. E reservai, Senhor, um lugar no vosso reino para aqueles que morrem de fome e sede em todo o mundo. E, antes da morte, alimentai-os com o vosso espírito para que tenham a oportunidade de salvação. Amém.

Eu rezei em volta da mesa com a minha família, agradecendo pelo alimento simples, mas saboroso. Era uma manhã ensolarada e tranquila na aldeia, onde todos se conheciam e se ajudavam. Nada parecia perturbar a paz e a harmonia do nosso lar. Mas, no fundo dos seus olhos, eu vi que o Francisco escondia um segredo. Um segredo que o atormentava todas as noites e que ele não ousava contar a ninguém. Um segredo que vinha do sótão.

Ele estava pálido e abatido, com olheiras profundas que denunciavam as noites em claro que ele passava. Ele mal tocava na comida, e só respondia com monossílabos às perguntas das  irmãs. Ele olhava com medo para o teto, como se esperasse que algo saísse de lá a qualquer momento. Ele ouvia os sons estranhos que vinham do sótão, e que só ele parecia perceber. Sons que pareciam um arranhar de unhas, um rosnar de fera, um sibilar de serpente.

Ele queria fugir daquela casa, mas não sabia como. Nós ignoramos o que ele dizia parecia terror noturno.
Mas possivelmente estamos enganados. E Francisco sabia disso. Ele sabia que havia algo maligno no sótão. E ele sabia que mais cedo ou mais tarde, que nos iríamos descobrir

— Fernanda, Manuela, não há tempo para birras a esta hora, peguem nas malas e vão para a escola.

Viver numa aldeia era sempre uma mais-valia; as crianças podiam ir sozinhas para a escola e ainda levavam o irmão do meio com elas.

— Francisco, amor! — Falei, sacudindo-o. — Adormeceste à mesa?!

Desde que viemos para cá, ele não dorme; trocou a noite pelo dia.

— Eu não consigo dormir à noite — disse Francisco. — Ouço coisas estranhas vindo da casa, e isso deixa-me nervoso.

— Seu pai hoje vai ver o sótão; é uma casa antiga, os ratos gostam disso! Eu e o pai vamos terminar as arrumações e fazer os pequenos arranjos porque já estamos aqui algumas semanas, e o padre ainda não veio abençoar a nossa casa!

David estava curioso sobre o que havia no sótão. Ele não acreditava nas histórias do seu filho Francisco, que dizia que lá morava um monstro barulhos tudo que uma mente infantil conseguia usar. Ele achava que era tudo fruto da imaginação dele, ou talvez algum tipo de pesadelo. Ele queria ver com os seus próprios olhos o que se escondia naquele lugar inundo.

Ele aproveitou que eu estava ocupada com as arrumações e que as nossas filhas tinham ido para a escola, e subiu as escadas em silêncio. Ele levou consigo uma lanterna, pois sabia que o sótão era escuro e empoeirado. Ele encontrou a porta do sótão fechada com um cadeado, mas ele tinha a chave. Ele a tinha guardado no seu bolso, pois pretendia verificar o sótão mais tarde comigo.

Caixas e mais caixas empilhadas cheias de poeira, meu pai não deveria ir lá, David pega um álbum de família, um daqueles álbuns em que as fotografias estão coladas com cola, uma das fotos é o que chamou mais a atenção dele, tinha uma mulher vestida com trajes campestres com um coque e um bebê no colo, não dava para dizer se era menino ou menina pelo estilo das roupas antigas. David encarou o rosto da mulher na foto. Eu me aproximei por trás dele e parecia estar hipnotizado. Coloquei minha mão em seu ombro e ele quase me acertou-me de susto que levou.

No instante em que a foto capturava a presença sombria daquela mulher desconhecida, sentimos uma atmosfera estranha pairar no ar. Era como se o passado tivesse tomado forma diante de nossos olhos. A expressão enigmática nos olhos daquela mulher deixou-nos intrigados, despertando nossa curiosidade sobre sua história e conexão que sentimos.

Os detalhes do ambiente ao redor sugeriam que a fotografia foi tirada há muitos anos atrás, quando tudo ainda era escuro e misterioso. As roupas desgastadas pela passagem do tempo evocavam memórias escondidas, segredos guardados entre as páginas amareladas do álbum familiar.

De repente, ouvi um barulho fraco vindo de um dos armários, um chiado agudo  que permaneceu em meu ouvido. Eu tinha que ir ver o que era. David ainda estava hipnotizado pela foto. Se eu estivesse com ciúmes ou se aquela mulher estivesse viva, eu pensaria que ele estava apaixonado.

—Este vai ser o meu escritório — ele diz, mas então ele acorda de sua hipnose com um grito meu. Era um grande rato.

Aquele barulho havia sido causado pelo pequeno intruso roedor! Assustadoramente, a criatura fugiu para um canto escuro do cômodo e desapareceu rapidamente. Fiquei aliviada por não ter sido algo mais perigoso. David respirou fundo e disse:

—Precisamos chamar alguém para lidar com esses ratos imediatamente. — Eu concordei com ele, pois a presença desses animais pode trazer diversos problemas para nossa casa tantos a nível de saúde como a nível espiritual, uma ninhada de ratos em casa, faço uma cara de nojo, aquilo não era ratos mas sim ratazanas que mais nojentas são, comparando com os ratos do campo.

— O monstro do Francisco! — solto uma gargalhada enquanto Tomé brinca com um objeto que encontrou no chão. Era uma pedra de granito branco, com cerca de quinze centímetros de diâmetro e três de espessura. A pedra tinha uma forma redonda, mas irregular, como se fosse uma moeda antiga. Nela estava gravada uma frase em latim, em letras maiúsculas e bem definidas:

**FIAT VOLUNTAS TUA**

Eu reconheci a frase como uma parte da oração do Pai Nosso, que significa "Seja feita a tua vontade". Eu me perguntei quem teria escrito aquela frase na pedra, e por quê. Seria uma expressão de fé ou de resignação? Seria uma súplica ou uma oferta? Seria uma homenagem a algum santo ou a algum mártir?

Tomé não parecia se importar com o significado da frase. Ele apenas achava divertido fazer a pedra girar pelo chão de madeira, fazendo um ruído que competia com o do rato. Ele parecia se sentir confiante e tranquilo com a sua descoberta, como se tivesse encontrado um presente divino.

Eu olhei para David, que também sorriu com a cena. Ele pegou o álbum de família novamente e folheou as páginas. Ele parou na foto da mulher misteriosa e do bebê. Ele me mostrou a foto e disse:

— Olha só, esta é a mesma pedra que o Tomé encontrou. Será que esta mulher era uma parente do teu pai ?

Eu olhei para uma outra foto com mais atenção. De fato, a mulher segurava a pedra na mão direita, como se fosse um rosário ou um medalhão. Ela olhava para a câmera com um sorriso sereno e humilde, como se soubesse que estava cumprindo a vontade de Deus. O bebê estava enrolado em um cobertor rosa, sem mostrar o rosto. Era uma menina, bem isso se for o mesmo bebê da foto que David, tem na mão!

Eu senti um arrepio na espinha. Havia algo estranho naquela foto, naquela pedra, naquela mulher. Eu me perguntei quem era ela, qual era a sua história, qual era o seu segredo.

{...}

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