Capítulo 3 - O Pesadelo Noturno

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Uma brisa suave invadiu a cozinha pela janela aberta, trazendo um aroma de flores e fazendo as cortinas balançarem como bailarinas. Mas não era hora de admirar a paisagem, pois os meninos logo chegariam para o almoço, cheios de fome e de vontade de brincar. Eu tinha uma história para contar a eles, sobre o monstro que o Francisco encontrou no sótão. Coloquei os pratos na mesa, ansiosa pela sua chegada. Não demorou muito para eu ouvir os seus passos rápidos pelo corredor, que faziam o chão de madeira ranger. Sorri, sabendo que a diversão estava garantida. Eles entraram na cozinha com um sorriso largo no rosto, animados pelo cheiro da comida. Sentaram-se ao meu lado, atentos à minha história. Tomé tentava comer o seu creme de legumes, meio ia para fora mas nada que me deixe-me arreliada.

— Era uma vez um rato... — comecei, enquanto cortava um pedaço de carne. — pois é Francisco o seu monstro é um rato.

As crianças me olharam com curiosidade e surpresa, soltando os talheres por um instante.

— Um rato no sótão muito bonito! — disse Tomé, com a sua vozinha inocente.

— Não era um rato qualquer, era uma ratazana enorme e assustadora! — corrigi Tomé, com um ar divertido.

— Uma ratazana? O monstro do Francisco era uma ratazana? — perguntou Fernanda , incrédula.

— Sim, e eu quase morri de susto quando a vi. — confessei, lembrando-me do episódio. Para eles, era uma aventura; para mim, um pesadelo. — David !

Grito por ele que não desceu para almoçar ficando no sótão remexendo nas coisas, mas pelo visto ele não estava interessado em almoçar com a gente.

{...}

Passaram-se algumas horas desde o almoço e o sol começava a pôr-se no horizonte. As sombras cresciam lentamente, envolvendo a pequena vila. Decidimos dar um passeio até à igreja local para combinar com o padre sobre a missa do dia seguinte. O caminho até lá era tranquilo e iluminado pelos últimos raios de sol do dia. As crianças corriam à frente, ansiosas por chegar à igreja e encontrar o padre.

— Sua bênção, Sr. Prior. Peço desculpa, o meu marido está a trabalhar no seu novo livro e não pode vir. Eu queria que o senhor fosse abençoar a minha casa.

— Que Deus abençoe. São novos na região? — pergunta ele com o seu ar amigável.

— Sim, mudámo-nos para Monsanto e estamos a gostar muito. É muito mais seguro que Lisboa, sem dúvida alguma. Eu herdei a Casa do Penedo do meu pai, então decidimos vir para cá. O meu marido David é jornalista, mas agora está a tentar escrever um livro... — tiro a pedra do meu casaco e mostro-a junto com os manuscritos — Não faço ideia, Sr. Prior, se pertence aos antigos donos. Talvez a Santa Igreja a queira?

— Nunca vi isso! Poderei ir à sua casa amanhã, por volta das 15h00.

A expressão da cara do Padre Domingos não era boa; até parecia um pouco reticente em aceitar.

— Não é necessário; pode ser um objeto da casa. É sempre bom guardar. Em todo o caso, amanhã eu irei lá e vemos... Um resto de um bom dia e que Deus o acompanhe...

Há tantos anos que convivia com padres, mas nunca senti esse distanciamento de nenhum deles. Pela primeira vez, senti que o padre não queria a minha presença na igreja pelas poucas palavras que trocou comigo.

O céu estava agora tingido de tons alaranjados e rosados, refletindo-se nas janelas das casas ao longo do caminho. A brisa noturna começava a soprar suavemente, as crianças deitavam-se, e eu ficava a arrumar o resto da casa. David beijou-me o pescoço, e eu olhei para ele.

— Já vais deitar-te? — perguntei a ele.

— Sim, e vou ficar à tua espera. Hoje estou feliz, consegui escrever três páginas... o bloqueio criativo desapareceu... depois de arrumar o sótão, um novo David nasceu...

David estava prestes a dormir, e eu estava assistindo a um programa de TV enquanto limpava a cozinha quando sussurros invadiram meus ouvidos. Meu rosto se contorceu e um arrepio percorreu minha espinha. Decidi investigar e encontrei Francisco andando sonâmbulo ao redor da pedra.

—Francisco, você está bem? —perguntei preocupada, tentando levá-lo para a cama sem acordá-lo. Dizem que não se deve acordar um sonâmbulo.

Consegui deitá-lo sem acordá-lo e sem acordar Tomé, que dormia em seu berço abraçado ao seu boneco.

Fechei a porta do quarto dos meninos. Francisco nunca teve sinais de sonambulismo. Olhei para o espelho e fui em direção ao quarto, acabando adormecendo. David não esperou por mim, já estava dormindo. Meus dedos acariciaram seu rosto e acabei adormecendo também.

{...}

Quando abri os olhos, eram 2h34 da manhã. Parecia-me ouvir um grito, era o David a gritar pelo Francisco. Corri até ao quarto dos meninos. O David segurava o Francisco, enquanto o Tomé chorava desalmadamente.

— Temos que acabar com as televisões em casa, se eu não chegasse a tempo ele teria matado o bebé... Eu vi uma luz acesa e vim ver o que se passava. Ele estava em cima do banco com uma almofada e sufocava o Tomé.

Abracei o Francisco com força, tentando acalmá-lo. Ele estava assustado e confuso, sem saber o que tinha feito. Peguei o Tomé ao colo e tentei consolá-lo, mas ele não parava de chorar. Tinha marcas vermelhas no pescoço e no rosto.

— O que aconteceu? O que levou o Francisco a fazer isto? — perguntei ao David, com lágrimas nos olhos.

— Eu não sei, amor. Ele nunca fez nada assim antes. Ele deve ter tido um pesadelo ou algo assim. Talvez tenha sido a pedra… — ele disse, olhando para o objeto que estava em cima da mesa de cabeceira.

— Como se eu tinha a pedra no meu casaco, hoje fui à igreja combinar para amanhã com o padre... e não tirei do casaco. — pego na pedra enquanto falo diretamente para Francisco, enquanto David leva as gêmeas para cama que com o barulho acordam. —Por amor a Deus,  Francisco, por que é que fizeste isto ao Tomé? Querias magoá-lo? — perguntei, tentando entender o que aconteceu.

— Não, mãe, eu não queria magoá-lo. Eu queria salvá-lo. Ela queria magoá-lo. — Francisco respondeu, apontando para a pedra.

— Quem é ela, Francisco? Quem queria magoar o Tomé? — insisti, olhando para a pedra com curiosidade.

— Ela é a mulher que fala comigo. Ela diz-me coisas. Coisas más. Ela diz-me para fazer coisas más. — Francisco explicou, a chorar com medo.

— Que mulher, Francisco? Que coisas más é que ela te diz? — perguntei, preocupada.

{...}

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