O sol entrava envergonhado e retangular pela fresta de uma janela semiaberta naquela manhã em que Miguel - um cientista solitário e reconhecido como "um deus em potencial e nada mais" - vibrava em uma euforia endossada com uísque e ansiolíticos espalhados na mesa, enquanto repetia sem parar: - Eu consegui, Ayo! Eu consegui! O mundo se curvará à minha memória e eu serei lembrado como "aquele que fez tornar-se deus". Eu sou um deus, Ayo! Eu sou um deus! Repetia enquanto dava outro gole no copo e completava com mais uísque.
Ayo, longe de um padrão de beleza que separa a juventude dos que ainda não foram castigados pelo tempo, era uma espécie contemporânea de Sancho Pança em fiel lealdade a Dom Quixote – aqui, no caso, a Miguel e suas investidas. Não havia desacordo, apenas concessão permissiva ao seu deus em "sim", "concordo" ou "não poderia ser de outro modo, meu senhor!"
Naquela mesma sala, um bebê de pele negra retinta, garantia em personificação o que Miguel chamava de "o triunfo da razão sobre falsas interpretações sociais".
- Hoje inicio o nascimento daquilo que mudará a humanidade, Ayo.
Disse ele, agora, em voz baixa, quase sussurrando, enquanto seu seguidor fiel colocava os eletrodos em sua cabeça, que o ligavam à máquina e ao bebê que foi batizado de Eliabe, nome escolhido por Ayo, por significar "meu Pai é Deus".
Por muito tempo falei na sobreposição da razão sobre o corpo. Na igualdade potencial da mente além da cor da pele, das condições étnico-raciais ou dos discursos que afirmam que não somos iguais. Nossa razão nos faz igual, Ayo, e não as condições sociais em que nascemos. Hoje, minha mente será transferida para esta criança. Eu, um homem branco e bem-sucedido, morrerei para que este bebê negro seja a prova de que "quando queremos, tudo podemos".
Miguel, o gênio diligente, afirmava que havia conseguido codificar sua mente e o processo de transferir suas conexões neurais para outro cérebro, sem perder suas pretensões, emoções, desejos e memórias. Decidiu morrer para que todos entendessem sua missão!
Contudo, antes de dar a vida, deixou definido em um dos pontos do acordo com Ayo que, depois de concluída a transferência neural, ele o levaria a uma periferia próxima que fazia divisa com o majestoso espaço residencial onde morava e o deixaria na porta de uma tal mãe Preta, conhecida na comunidade como grande mãe, por ser aquela que olha por todos e mesmo na sua miserabilidade, nunca deixa de ceder um espaço em sua mesa para um prato de arroz e feijão, que seja.
Eu acabarei com essa linha entre a minha mansão e o casebre daquela favela! Revelarei pelo exemplo que o mérito está na razão e somente na razão. Esta criança na nossa frente será o símbolo racional da inteligência, e sua cor não significará nada, senão a negação social de nossa força. Sempre afirmei que uma mente forte supera um corpo fraco. A inteligência supera a cor. A ciência desmonta a História.
- Você é um deus, Miguel! - Afirmou Ayo em tom de entusiasmo e encantamento.
O único e magnífico deus, Ayo. - Afirmou, apontando o dedo indicador para si mesmo, e prosseguiu. - O social é resultado do racional! - Reafirmou Miguel, jogando um sorriso esnobe para o lado, enquanto dava outro gole na bebida. – Eu vou provar pela minha morte e renascimento. Agora vá, pois chegou o momento! Injete o veneno em minha veia, ligue a máquina, pois hoje morre um corpo e nasce um mito, meu estimado amigo.
Estendeu a mão e segurou os dedos de Ayo, enquanto fechava os olhos levemente. - É hora de ser o eu no outro. - Balbuciou antes de dormir definitivamente.
Mesmo em lágrimas compulsivas de sons abafados, Ayo fez o que seu senhor demandou: injetou o veneno em sua veia, ligou a máquina, aguardou o tempo que o mestre lhe havia dito, enquanto o corpo de Miguel deixava a existência.
Ao fim do tempo ajustado, cobriu o corpo de Miguel, desligou "a máquina da razão", tirou os eletrodos da cabeça de Eliabe, enrolando-o em uma manta quente, e foi cumprir a segunda parte de sua grande missão. Seguiu em passos firmes com o bebê no colo e um cobertor mais grosso para deixá-lo na casa da 'grande mãe'. Seu propósito tinha que ser cumprido.
- Espero que isso atenda às suas expectativas. Se houver algo mais que eu possa ajudar, é só pedir!
Preocupado se alguém o vigiava, ia trocando olhares com os que passavam. Ao chegar próximo do beco que levava à casa de mãe Preta, aguardou até ter certeza de que ninguém estava olhando para ele e colocou a criança na porta da senhora, sentindo os nervos atrofiarem e tremerem ao avistar que havia uma janela aberta. Ninguém! Ninguém me viu – afirmava Ayo a si mesmo. Saiu sem olhar para trás, como aquele que deixa um amigo morto ao acaso, sem a chance de recuperá-lo.
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UMA CANÇÃO DE NINAR PARA DEUS
Historical FictionEliabe não havia conhecido o preconceito, mas ouvia sua mãe falar em sua casa sobre feminismo, feminismo negro, a história da terra e da sua pele, de ações afirmativas que conseguiam aos poucos furar o muro branco e europeu que colonizou a estrutura...