No dia do julgamento dos três policiais que assassinaram Eliabe, Ayo recontou sua versão da história que já havia sido investigada pela polícia científica. Nunca houve um útero artificial. Nunca houve uma máquina de transmissão da razão. Na casa de Miguel, que realmente foi um cientista banido da academia por suas defesas radicais de uma eugenia social, foram encontradas inúmeras frases que profetizavam a hegemonia branca e uma nova proposta de supremacia racial.
Miguel e Ayo, realmente, acreditavam que o bebê que sequestraram era uma criação gerada em um espaço artificial. Mentiram tanto para si mesmos que tornaram aquela história um propósito disforme de vida. Miguel morreu acreditando em sua verdade, e Ayo seguiu a sua, acreditando que, realmente, seu amigo estava na mente de Eliabe e instauraria a tal nova 'raça ariana racional' pelo domínio da 'razão branca'.
Com a condenação dos policiais e de Ayo, uma falsa justiça teria sido feita, segundo as leis que regulam a sociedade 'racional'. Contudo, nada traria Eliabe de volta para sua mãe Preta. Nada traria Eliabe à vida. Eliabe morreu, e uma vida, mais uma vida, chegou ao fim brutalmente. Uma falsa história, uma crença injustificada, uma ficção da própria existência, uma interpretação da cor – a morte de Eliabe. O julgamento já teria chegado ao fim, se não fosse por um pedido de mãe Preta para pronunciar algumas palavras, prontamente aceito pela juíza que deferiu a sentença.
Mãe Preta se levantou, como quem sobe a um altar, e com uma voz forte deixou que a voz saísse em alento e coragem.
- Hoje parece que a justiça foi feita. Talvez uma forma de justiça, mas não a justiça em si. Pela banalidade tiraram um filho de uma mãe e o colocaram na estatística de mais um preto morto. Quando meu filho foi assassinado, todos os pretos e pretas morreram em potencial, e com todos nós, morre uma humanidade todos os dias. Pela irreflexão, o mal se torna um instrumento ideal para toda cruel ideologia. Eliabe morreu como alguém que não teve o direito de resposta. Eliabe de Jesus morreu como um Cristo que não teve a opção de dizer 'prefiro continuar vivo'. Foi espancado até faltar-lhe o ar, e isso não pode continuar. Não podemos normalizar a morte de mais um preto, de uma mulher, de um homossexual, de uma vida! Somos vida e vida em abundância. Enquanto vocês colocam seus filhos na cama, em uma canção de ninar para Deus, eu enterrei o meu no silêncio de sua cor que é rapidamente esquecida. Eliabe morreu e eu morri com meu filho! Uma mãe, que ainda não sabemos quem é, teve um filho sequestrado. Talvez um dia descobriremos quem foi essa pobre mulher. Seremos eu e ela a enterrar o nosso amado Jesus. Ergo meus braços em resistência e repito: Enquanto vocês colocam seus filhos para dormir ao som de ninar, eu só pedi a Deus que recebesse o meu sem as marcas da violência que o levaram à morte. Durma, Eliabe, que hoje tua mãe ficará acordada, enquanto outro preto ou preta está sendo morto, no silêncio, neste exato momento. Durma em paz que tua mãe canta pra ti, porque você foi incrível, Eliabe. Você sempre foi incrível.
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UMA CANÇÃO DE NINAR PARA DEUS
Historical FictionEliabe não havia conhecido o preconceito, mas ouvia sua mãe falar em sua casa sobre feminismo, feminismo negro, a história da terra e da sua pele, de ações afirmativas que conseguiam aos poucos furar o muro branco e europeu que colonizou a estrutura...